domingo, 25 de maio de 2008

I am a bird now

entrem no www.mojobooks.com.br e confiram o meu conto I am bird now.

sábado, 24 de maio de 2008

Intermitências


I A Alvorada
Apesar do horário, 6:30, o sol tardava em se impor, uma fraca luz, juntamente com a neblina típica daquela região, transformavam o jardim num labirinto sensorial. As plantas salpicadas de orvalho indicavam mais uma manhã gelada, o que deixava Ana extremamente frustrada, pois era o último dia para as roupas secarem. Fazia dois dias que, sob o alpendre dos fundos da casa, no varal, a calça jeans, a camisa xadrez e a blusa de lã vermelha continuavam úmidas, o que comprometia sua volta à cidade, pois não trouxera outra muda. Não gostaria novamente de usar as roupas de Martim, mesmo ele não se importando.
Encaminhou-se ao fogão, acendeu uma das bocas e colocou água para ferver. O café sairia daqui uns minutos e mais uma vez o tomaria sozinha. No dia anterior, Martim tinha partido de madrugada para consertar o gerador de um sítio a trezentos quilômetros dali. Passou o café no coador de pano, sentindo o aroma da bebida, deliciando-se com a breve solidão, que antes a perturbava: “Ele não será daquele tipo de homem que abandona a esposa e os filhos, já teria reconhecido... Sou amiga da minha intuição”.
A aquisição do sítio em Gonçalo foi mais importante para Ana do que seu próprio casamento, que feito às pressas, parecia atender mais aos familiares do que o próprio casal, que era avesso a cerimônias tradicionais. Entretanto, com a gravidez imperceptível no ventre, mas evidente pela feição de plenitude que Ana radiava em seu rosto, a jovem de vinte sete anos casou com um belo vestido branco, para que na saída da igreja fosse recebida pelos amigos, com chuva de arroz. Uma nova fase em sua vida se iniciava silenciosamente, como quando um gato boceja na escuridão.
“Geléia de framboesa. Ao menos uma compota, dá tempo de fazer”.
Lá fora, os pés de framboesas carregados contavam a história da família que ali morou: a pedido da matriarca, a cada nascimento de um filho, o pai plantava duas framboeseiras. Quem havia descoberto essa tradição familiar, por acaso, foi Martim, que logo no primeiro dia de ocupação da casa, ao colocar o samburá de pesca no prego atrás da porta da cozinha, encontrou não só o nome de cada filho entalhado, como também a receita de uma geléia intitulada: ange gardien.
“Sofia levará pão integral com geléia para a escolinha”.
Ana passou a mão sobre o ventre, e sem perceber, legitimou o seu desejo íntimo: era a primeira vez que não se repreendia por querer uma garotinha, já que até bem pouco tempo atrás, quando surgia em sua consciência a personificação do bebê, o imaginava menina, daí o fato de mudar repentinamente de humor. Martim, nesses momentos, quando flagrava a esposa com o cenho franzido, olhando para o nada, apreendia suas feições como indício de maturidade, de concentração de responsabilidades, chegando até mesmo a se tornar mais atraente, parecendo-se com uma outra Ana que não conhecia, mas que sabia de sua existência e já lhe amava. Entretanto, a jovem mulher, perto do que imaginava proibido dentro de si, sentia-se mal, e rapidamente corrigia seu pensamento e suas emoções, pois não achava de bom tom ter suas predileções acima da sabedoria da natureza, da providência divina, que tramava misteriosamente o que seria a excelência para a vida dessa nova família.
“Talvez não trabalharei no primeiro ano de vida de Sofia.”

II Ange Gardien

O ano de 1998 foi triste para Clair, seu esposo, Pedro, falecera. Sentada no sofá com uma amiga, que viera do interior visitá-la, a mulher de cabelos avermelhados e olhos castanhos escuros acariciava as franjas da manta do sofá, após ter dito que mesmo não sendo mais jovens, ainda procuravam namorar às manhãs.
Estava numa festa de amigos num apartamento, quando avistou um belo rapaz escorado no batente da porta, com uma cerveja na mão. A barba preta, os olhos escuros chamaram a sua atenção. Falava entusiasmado com um casal, que atento, na expectativa, sorriam se preparando para gargalhada.
“Parece com o Olavo. Será o Olavo?”
- Quem é aquele moço na porta? – disse Clair ao dono do apartamento
- Pedro. Terminou Sociologia o ano passado. Quer conhecê-lo?
- Muito parecido com um amigo meu...
O que levava Clair lembrar de Olavo em Pedro, era algo que ainda não sabia, mas que logo na primeira conversa descobriu: I Love supreme para ouvir à noite, quando está se preparando para partir. Em 67, Paris convocava a inaudita paixão dos milhares de jovens espalhados pelo mundo, como o som daquele apito, o qual apenas os cães ouvem, passando despercebido aos ouvidos humanos: os rumores de maio de 68 chegaram muito antes àqueles que não se prendiam ao que Clair deliciava-se, mesmo repudiando-se: a segurança da vida aburguesada. Afinal, Jules e Jim era muito mais anárquico do que qualquer líder estudantil. Pelo menos, seu coração na intensidade de sua delicadeza aspirava uma vida mais anônima e não menos visceral. Podia sim ter mais de um amante. Podia sim não se casar. Podia sim voltar-se apenas ao trabalho: a curadoria do museu e suas criações.
Com relação a Pedro, esse partia mas para voltar em breve, passaria seis meses na casa de seus pais no interior de São Paulo, antes de começar o novo trabalho numa empresa estatal. Quando voltou, mudou-se para o ateliê de Ana.
“A sua existência em minha vida era algo que não me pertencia, talvez estivesse amadurecendo, não cobrava mais acertar o caminho. Aceitei, pela primeira vez, o que a vida quis me dar. Foi com Pedro que me libertei, os meus desejos não chegavam até ele de modo a fundir-se. Estranhamente, recuavam-se e dentro de mim, me obrigava abrir mão de sua presença paradoxalmente, pois para estar ao seu lado, primeiramente, tinha que estar comigo.”
- Quer com geléia? Fiz ontem, dessa vez experimentei com açúcar orgânico – sorriu Clair, recuperando-se das lembranças e encaminhando sua amiga até a cozinha.

III - O corpo, a potência e os afetos

Chovia à noite, e dentro do vagão do trem, Martim encostava o rosto no vidro da janela para ver a chuva enrugar a superfície do rio. O combinado era de que, ao abrir o envelope do teste, Ana ligaria imediatamente para dar a resposta. Não queria esperar a hora de chegar em casa, estava ansioso demais. No trabalho, pouco falava e, em sua mesa, fazia os cálculos com um pouco mais de dificuldade com relação aos outros dias. Casaria. Estava decidido. Mudariam para um lugar mais amplo e como quando percebemos que um hábito não mais satisfaz a demanda de novos desejos, criaria, com um tanto de sofrimento, um novo homem, o qual ansiava tornar-se.
“Coloque as framboesas em uma panela e amasse-as levemente com ajuda de um garfo. Adicione o açúcar e o suco de limão, misture e leve ao fogo. Assim que ferver, abaixe o fogo e cozinhe até obter a textura desejada, fazendo um teste de vez em quando em um prato para verificar a textura porque ao esfriar a geléia irá ficar mais espessa. Coloque em vidros e guarde na geladeira.”
Sentada na cadeira de balanço no alpendre da frente da casa, Ana, enrolada em um cobertor, esperava o fim do dia, queria voltar à cidade e estava com saudade de Martim. Na verdade, estava um pouco amedrontada com o fato de estar grávida. Seria mãe, ensinaria o que não sabia, teria que fingir a constância de um mundo caótico, que por termos geléia no fogo e árvores estáticas em dias de chuva, acreditávamos conhecer o sentido da vida.
- Faz tempo que estão morando aqui? – disse uma senhora ruiva, que saia lentamente de uma senda que ligava a casa de Ana com a dela. Parou um minuto, observou atenta os brotos de bambus e murmurou algo para si. Ana não se assustou, a circunspeção em que se encontrava lhe protegia de fragmentar suas emoções aos estímulos externos.
- Como? – levantando-se com dificuldade, pois o pé se enrolara no cobertor.
- Mudou faz quanto tempo? – Clair sorridente aproximou-se da jovem.
- Compramos há quatro meses. Temos que reformar. Muita coisa precisa ser feita.
- Vai gostar de morar aqui. É bem tranqüilo e seguro.
- Já gosto. Adoro as framboeseiras, aliás, preciso entrar, tem geléia no fogo. Gostaria de me acompanhar?
Ana abriu a porta para Clair entrar, notando a beleza da senhora. Do xale de lã preto, rosas vermelhas e folhas verdes adornavam seu entorno, que pendiam a cada passo dado. Os cabelos ruivos, presos nas laterais por grampos dourados, conservavam um brilho que poderia ter sido perdido com o passar dos anos, enquanto a corpulência juntamente com os modos serenos compunha um magnetismo que atrai os que buscavam uma vida poética.
- Eu também tenho essa receita na porta da minha cozinha. – disse Clair, que friccionava seus dedos nas letras talhadas – Ajudei Beatriz a desenhar estas framboesas.

IV- O crepúsculo

- De quantos meses?
- Sete.
“Era maio, Maria veio ao meio dia e pouquinho. Depois de um ano e meio, em maio também, veio Guilherme. Pedro queria mais filhos. Mas a gravidez de Guilherme me desestabilizou emocionalmente. Era difícil aceitar que não desejava essa gravidez. Queria participar da Bienal. Queria me dedicar mais ao trabalho. E mesmo com ele no colo, amamentando, ainda o rejeitava. Não queria o filho.”
O vidro sobre a pia estava pronto para armazenar a geléia. Clair encantou-se com os movimentos de Ana, que mais distante do que o necessário, tomava o cuidado de esticar os braços o mais longe possível para não se queimar e que, com certa flexibilidade e destreza, enchia o pote com o caldo rubi.
- Menino ou menina?
- De que adianta saber o sexo? Muda a predileção?
Com quem poderia compartilhar suas fantasias? Seus medos? Se Clair não tivesse aparecido, Ana ficaria novamente melancólica, fato este que estava acontecendo com freqüência e, que pega de surpresa, envolvia-se sem escolha no turbilhão de emoções, sem tempo de suspender-se em reflexão, e como uma criança, aliviava seus temores na crença de que quando o tempo melhorasse se sentiria melhor, ou quando a roupa estivesse seca e principalmente, quando Martim retornasse, voltaria a ser o que era. Mas o que era e como seria daqui para frente?
- Tenho um casal de filhos. O meu segundo foi uma surpresa.
- Este foi uma surpresa! – as duas mulheres riram.
Guilherme ficou durante quatro meses aos cuidados da sogra de Clair, que preferia ficar sozinha depois de amamentar e que prolongada suas angústias, resolveu, com acompanhamento médico e terapêutico, dedicar-se à arte. Naquele momento, as coisas ficavam menos dolorosas.
- Gostaria que fosse uma menina – Ana disse, desabafando.
- É uma delícia ter uma garotinha.
- Não sei se ficarei feliz se tiver um menino. Posso?
- Como?
- Ficar triste se nascer um menino...
As framboeseiras balançavam ao vento, algumas folhas roçavam nos vidros da janela da cozinha: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete árvorezinhas. Beatriz, havia tido três filhos. Quando Clair ainda estava deprimida, a antiga moradora da casa, onde Ana agora morava, chamou a vizinha para conhecer seu quintal. Pedro, a estimulou a ir, não agüentava mais ver sua esposa triste, estava preocupado com sua saúde e até mesmo com a de toda família.
“O dia estava quente, lembro que usava um vestido amarelo florido. Beatriz me deu uma muda de framboeseira para plantar em seu quintal: - Plante. É uma arvorezinha vigorosa – disse a mim. Logo depois, me trouxe até a cozinha e talhamos o nome de Guilherme na porta. Fizemos geléia e levei um pote para Pedro, que com sua mãe e Catarina, minha primeira filha, se deliciaram. Naquele dia, amamentar foi menos doloroso. E logo depois, em três meses Guilherme voltou aos meus braços.”
- Ficar triste se nascer um menino? Pode sim.
- Acho errado.
- Não somos obrigadas a amar todas as condições e até mesmo todas as pessoas.
- Me esforço para não desejar. Acho mais sensato aceitar a vida do jeito que é.
- Só fruta? – disse Clair experimentando a geléia.
- Como? – titubeou Ana.
- Sem transformação, sem acrescentar os desejos, sem fundi-lo: o doce, o azedo, a fruta. Misture e dará uma bela geléia.
Lá fora, um carro estacionava, era Martim com roupas novas para Ana e mais uma muda de framboesa.