domingo, 30 de maio de 2010

Crônica extraordinária de menina descompensada

Pode ser uma grande besteira sentir tanto medo, nessa vida, de ser o que se pensa que se é e que às vezes, se tivermos sorte de estarmos atentos, somos mesmo e chegamos até a acertar os nossos desejos, parecendo que se é feliz a maior parte do tempo. Não, não faça essa cara de que não entendeu o recado. Confesso que complicei o óbvio e desde aquela época, quando nos conhecemos, você estava certo quando disse: um pouquinho problemática. Mas o importante mesmo é que você estava lindo, assim de repente, na porta do hotel. Naquele momento, depois de tudo, compreendi como um elogio a pro-ble-má-ti-ca. Achei interessante esse rótulo, para mim eu era apenas uma garota que tinha de sobra imaginação e tempo livre, do mesmo modo que me faltava gente bacana como você, que sabe ficar assim: à toa com elegância e inteligência sem cair na prosa. Enfim, 2+2 são 4 e de fato sou um pouco descompensada.
Me falta a faculdade de simplificar. O trivial nunca fez parte da minha vida. Quando criança, ia à aula com um paletó do meu pai e meias vermelhas até o joelho. Em casa, ninguém disse: menina, não faça isso! E optei daí ser solta até o fim da minha vida, porque isso me causa menos exasperações. Olha, vou ser direta, cara, se eu fosse uma vaca, ou uma galinha, ou hiena, ou ovelha, não te amaria tanto e portanto, não passaria tantos vexames, na frente dos outros, ao dizer meio bebadinha que você é foda. Ainda não entendeu o recado?
Há duas semanas que não te encontrava mais. Falta de você. De tudo da gente. Certo que fui eu quem rompi quando o nó ficou cego, mas veja: amarelei antes de te confiar isso aqui: gosto de você horrores e isso me dá medo. Meu destino de passarinha está preso a alguém-gaiola, pois de repente e injustamente - afinal, ninguém consultou o meu juízo - num rolê à noite, você me sacou certinho. É. Pode ser besteira ter tanto cagaço. Pode mesmo, mas eu acho que você também sente o que eu sinto por você.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O cervo

O que fazer quando se tem dentro de si uma floresta? "Todos temos", responderia seu analista junguiano. "São representações do inconsciente, vá até lá e prepare-se..."
Habitar-se densamente. Mas o insight só veio mesmo, quando me deparei com um quadro da Fridha Kahlo: um cervo ferido. O rosto do animal era o da própria pintora. Lindo demais e ao mesmo tempo, sofrido. É o ethos da Fridha, da sua arte, as vísceras e a cor. Belo, na medida. A partir disso, compreendi a outra parte do meu sonho. Eu estava começando a fazer as pazes com o meu Self mais instintivo, no bom sentido. Conseguindo me fragmentar menos com as exigências de uma rotina, que muitas vezes me deixa exausta. Perturbada. No caso da Fridha, o cervo está ferido. Os martírios de sua vida, a poliomelite, o acidente, o aborto... Era a mulher selvagem pega e ela precisava de cuidados e a arte foi salvando-a pouco a pouco. Por um tempo não sabia o que fazer com o meu lado mais instintivo, que sempre pediu a ser integrado ao mundo. No meu sonho, eu cuidava de um animal pequenino, o carregava no colo, ninava-o sem saber que espécie era até então e de repente ele cresceu, forte, e vi que era um cervo com chifres grandes e pontudos. Ele queria voltar ao seu lar, à sua floresta. E eu não sabia o que fazer, estava agitado demais, até que alguém me auxiliou com uma pomada analgésica e ele se tornou um bebê lindo e então mais que depressa levei-o para um lugar adequado. Foi um sonho reparador. Eu chorei. Chorei muito, no sonho. Mas descobri a responsabilidade que é cuidar daquele animal, daquela criança que também está presente em tudo o que faço e que se cuidá-la dá para eu ser mais íntegra. A Fridha Kahlo buscava retornar ao seu estado natural (à sua floresta) com as inúmeras operações, realizadas no exterior, na tentativa de amenizar a sua dor. Mas infelizmente, não adiantaram. E o que restou a ela era a arte como salvação e que hoje, em 2010, em um apartamento em São Paulo, também me ajudou a entender um pouquinho mais de mim mesma, de ficar mais à vontade com as minhas exasperações e aceitar a realidade e alma como elas são.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Caminhando pela vila...

Não quero filosofar a vida. Quero apreendê-la de supetão. O homem do outro lado da rua, com as sacolas, na mão, vai sem mistério e atravessa certeiro o fim do seu dia. Ele não tem insônia. Está satisfeito com o que tem. Colocará sobre a mesa os pães, os cortará ao meio, passando a manteiga. Ligará a televisão. Não sabe que vive como um boi castrado por espanto e admiração de existir. Mas Proust conseguiu a cura, deu-se de presente personagens como Swann e Odete de Crecy. Como tenho dificuldade de deixar ser o que é, a minha luta é no palco das letras, onde apaziguo o sensível e o cogniscível. Às vezes, tenho a cara de pau de pensar que não sei para quem e o que vivo, pois o desânimo é o avesso do ideal, é uma armadilha para frustração de quem ainda resiste em amadurecer. De qualquer modo, a forma é que me impressiona. Ver todos vocês em pé, logo de manhã, indo atrás de seus sonhos como se fossem de vidro. Restando a mim apenas a compaixão.

domingo, 9 de maio de 2010

ALQUIMIA...

Para o budismo cada sentimendo contém uma centelha de Iluminação, ou seja, a possibilidade de sermos mais inteiros, plenos, libertos de qualquer sofrimento. Daí sermos tolerantes a tudo, inclusive a raiva, a nossa e a do outro. Portanto até esse sentimento, o qual é renegado às sombras é visto como uma possibilidade de encararmos a Vida, a partir de outra perspectiva, primeiro, deixando ele ser o que é, sem amaldiçoá-lo, mas também sem deixar que ele nos domine, isto é, integrá-lo à consciência de maneira compassiva.
Achei interessante. Mas seria possível? E um dia desses, me peguei sentindo uma raiva absurda, daquelas que deixam os olhos da gente mareados de lágrimas; daquelas que nos deixam, levemente, febris... (Creio que não há nenhum ser humano que não tenha sentido isso, se não sentiu deveria, pois o humano passa, inclusive, por aí).
Fiquei cega. Queria apenas blasfemar e me vitimizar. Tentei sair de cena forjando uma compaixão que beirava mais à omissão da injustiça do que de fato uma atitude correta, que poderia beneficiar tanto a mim, quanto à pessoa envolvida, no conflito, pois todos nós precisamos tomar consciência de quem somos, inclusive, naquilo que não é belo.
Enfim, deixei a raiva ficar no centro da minha consciência: vi no palco a revolta, a vitimização, a omissão, o medo, etc. Por que sentimos isso? Se fosse um tempo atrás, me sentiria culpada. E isso tão pouco ajudaria. Não acredito em culpa e sim em responsabilidade.
A partir disso, consegui acertar o alvo do meu incômodo. Foi como um processo alquímico, o que era algo concetrado, que bloqueava qualquer expansão de desenvolvimento diluiu e transformou-se na ação correta, pois descobri que o procuro está aqui dentro. Assim:
Não me senti mais vítima, não porque não foram omissos e frágeis, na hora de fazer a escolha, mas porque já sei que sempre terá uma saída para mim, pois acredito na minha continuidade.
Não me senti mais colérica, não porque não havia motivos de indignação quanto à falta de respeito, mas porque eu sei que ninguém tem a última palavra sobre o nosso valor a não ser nós mesmos.
E a partir disso, abri um canal enérgico aqui dentro e decidi transformar isso - a raiva, a agressividade - numa maneira mais assertiva diante daquilo que me cabe fazer, enfim, deixar a lenha queimar para bons motivos: acordar de manhã e trabalhar todos os dias com mais certeza, naquilo que adoro fazer. Lapidar alguns talentos, aceitar as minhas limitações minhas e a do outro, ir atrás do meu bem-estar e de quem amo com mais perseverança, aprender a perdoar o que é possível e dar o golpe último, naquilo que não é, conviver com o que é banido em mim e no outro, na sombra, de maneira consciente e acreditar sempre nos resultados das transformações de nossa alma...