sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Ano Novo

O que pensar a respeito do que virá, ou que gostaria que viesse em 2009. Sei que a melhor dica é viver o presente, para isso medito e busco ficar atenta aos caminhos auspiciosos do já, mas quando me pego olhando o teto do quarto à noite, é no futuro com suas incógnitas que mais dedico a talhar meus desejos para que se tornem concretos. E é aí, no meio do caminho, que me deparo com a conclusão frustrante de que querer não é ser. E vejo o quanto de energia estou gastando com devaneios e confusões até que pego no sono.
Não tenho controle de nada, nem de mim mesma, nem do outro, nem da realidade...
O futuro, atualmente, para mim me parece ser mais uma resposta de como você lidou com o presente do que lista de planejamento para ações: seja na relação com os amigos, com os namorados, com o trabalho, com a natureza... Um lance de ação e reação. Adianta fazer planos?
O imprevisto é o convite que desestrutura e nos põe em xeque: e aí, até quando conseguirá ficar em cima da corda bamba? E fico, porque temos de ser generosos com a vida simplesmente porque fica mais bonito o mundo. É uma opção estética a ética.
Fazer planos para 2009 me parece interessantísssimo, até porque adoro essas lista: emagrecer, estudar inglês, beijar mais, estar com a família... Mas não me parece assim que o mundo funciona, é outra dinâmica a qual não nos pertence e só percebemos isso quando acumulamos ilusões. Mas vamos lá!
Ler em Busca do tempo perdido do Proust, me faz pensar nisso: menos futuro, mais presente...
E você, como tem gasto o seu tempo?

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

FRESTA

Ser fiel acima de tudo àquilo que desconheço,
que me faz estremecer ao encontrar ,
na hesitação das possibilidades,
os mínimos sins.
Somar e somar.

A honestidade para com a nossa condição
poderá nos salvar:
Ah, se fôssemos inteligentes suficientes para
percebermos que essa brincadeira
é um modo de passar o tempo!,
Não existe nada além do presente,
Mas procuro uma porta de fuga,
sonhando retornar.

Mas retornar é reconhecer
Que nunca tivemos o que procuramos.
Não há nada além disso – que verdade libertadora!
Não me estranhe quando digo:
Por que ficaria brava, fiz a minha parte!
Vislumbrei nas frestas e sei que você também!
Mas há medo porque pensamos burramente
Que algum dia seremos mais felizes
do que quando reconhecemos nossas feridas – que verdade libertadora!

Alegria é algo construído às duras penas
Constato diariamente que preciso Ser.
estou indo... fui... cheguei... voltei renascida...

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Sr. Alguém

Parou sem saber
o que deixava.
Da janela onde estou,
na encruzilhada de sua vida,
manca suas três noites coxas:
lembranças moladas de menino nordestino.

De estrelas de verão a pão
faltava-lhe mais afago
do que vermes engendrados:
narrativas sem compaixão
e silêncio dos desvios da sina.

São Paulo: carros rompem seu delírio
e o homem-relógio abre o caminho para o rito:
banha-se procurando o ínicio da noite enluarada.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

A obsessão do esclarecimento

"A vida e a morte fluem pelo ser. Não há evolução e nem destino. Só ser. "

Albert Einstein
Nascido em 1879, Princeton, e falecido em 1955. Físico alemão radicado nos Estados Unidos mais conhecido por desenvolver a teoria da relatividade. Ganhou o Prêmio Nobel da Física de 1921 pela correta explicação do efeito fotoeléctrico.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

MAIS ROSAS NA CASA DAS ROSAS

Um dia volto,
o avesso do orvalho
conspira duas mandalas
nos meus olhos:
pergunto-me sobre
o retorno suave
e o que cai sobre
o meu colo são
talheres gélidos,
encrustrados
de grãos de arroz.

um lampejo clareia
o meu caminho:
é hora de polvilhar
a entrada com almíscar,
talvez seja o que é
e sendo tornar-me-ei
rosas rosas.

domingo, 28 de setembro de 2008

MEDITAÇÃO À BEIRA DE UM POEMA Adélia Prado

Podei a roseira no momento certo
e viajei muitos dias,
apredendo de vez
que se deve esperar biblicamente
pela hora das coisas.
Quando abri a janela, vi-a,
como nunca vira,
constelada,
os botões,
alguns já com o rosa-pálido
espiando entre sépalas,
jóias vivas em pencas.
Minha dor nas costas,
meu desaponto com os limites do tempo,
o grande esforço para que me entendam
pulverizaram-se
diante do recorrente milagre.
Maravilhosas faziam-se
as cíclicas, perecíveis rosas.
Ninguém me demoverá
do que de repente soube
à margem dos edifícios da razão:
a misericórdia está intacta,
vagalhões de cobiça,
punhos fechados,
altissonantes iras,
nada impede ouro de corolas
e acreditai: perfurmes.
Só porque é setembro.
Foto tirada em 28/09/08 na Casa das Rosas - SP

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Diques

Hoje, ao voltar do trabalho,
no parapeito da janela
vi uma rosa incorrupta,
assemelha-se ao seu pudor ferido:
pobre burguês ardente,
jamais saberá o que é o amor.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Cântico dos cânticos

Don´t explain
Billie Holiday/ Arthur Herzog Jr.

Hush now, dont explain
Just say youll remain
Im glad your back, dont explain
Quiet, dont explain
What is there to gain
Skip that lipstick
Dont explain
You know that I love you
And what endures
All my thoughts of you
For Im so completely yours
Cry to hear folks chatter
And I know you cheat
Right or wrong, dont matter
When youre with me, sweet
Hush now, dont explain
Youre my joy and pain
My lifes yours love
Dont explain

http://www.youtube.com/watch?v=3RYi8d6wxvA

terça-feira, 19 de agosto de 2008

AMOR FATI

...é uma expressão latina cuja tradução livre seria "amor ao fado", "amor ao destino".O significado da expressão varia conforme o entendimento dos termos fado e amor.
A expressão aparece em Nietzsche, sendo usada como "fórmula para a grandeza do homem" e que significa:
"Não querer nada de diferente do que é, nem no futuro, nem no passado, nem por toda a eternidade. Não só suportar o que é necessário, mas amá-lo". O termo aparece varias vezes em Gaia Ciência, mas é neste trecho em particular citada de forma mais clara:
"Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas coisas: - assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas.
"Amor fati" [amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor" Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que minha única negação seja ‘desviar o olhar’! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum dia apenas alguém que diz sim."
Para Nietzsche, "amor fati" é amar o inevitável, amar o destino, amar o justo e o injusto, o próprio amor e o desamor. Ou seja,"ser, antes de tudo, um forte", sem se reclamar da vida, sendo indiferente ao sofrimento. Uma retomada do antigo pensamento grego dos filósofos estóicos.

Travessuras

Provisoriamente, nos procuramos
Quem cava as duras penas
O frêmito do seu corpo
É o meu delírio sólido:
diamante do ventre.

Se precisa de amor para viver,
Invento a passagem da câmara
Que bem sei: no fundo, a solidão
É o ganho de quem se cala.

A sábia árvore –
Velha de mãos secas –
Torce a sua copa até o chão
Recolhendo meus cabelos:
- filha pródiga, do que tem medo?

Os olhos, vórtice do coração,
Encobrem o que todos intuem,
E como uma flor
no extático momento
do desabrochar
imponho o meu destino
Doce, doce, sem vestígios.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

ENCONTRO INTERNACIONAL DE LITERATURA E AÇÃO CULTURAL

Literatura é arte, conhecimento e vida. É a vida transformada em Palavras. É também prazer e encantamento capaz de transformar a criança e o adulto.
A literatura permite ao ser humano se reconhecer como indivíduo como seus sentimentos, favorece sua inserção na sociedade e no mundo e acende a consciência de seu papel social e histórico. Atráves dela, o indivíduo denuncia, e se liberta, constrói seu caminho e reconstrói sua existência. O contato com a literatura propcia a elaboração do conhecimento, além de enriquecer a imaginação, que é fundamental ao desenvolvimento psíquico e afetivo do ser humano.
Dentre as diretrizes e ações que o SESC SP tem desenvolvido no decorrer de sua trajetória, destaca-se a realização de projetos e atividades focados na literatura e na sua interseccção com os demais saberes e linguagens artísticas: as narrações de histórias, as rodas de leitura e poesia, o encontro com escritores e coletivos lierários que acontecem nos diversos espaços, oferecendo também ao público o acesso a livros e publicações de qualidade.
O Encontro Internacional Literatura e Ação Cultural pretende reunir pesquisadores, professores e mediadores de várias regiões do Brasil e de outros países, que trabalham com a literatura e a formação de novos leitores, proporcionando um campo de troca de experiências, idéias, e estudos de relevância nessa área. Para o SESC SP a parcera com a A Cor da Letra e Vaga Lume é mais uma oportunidade de contribuir para a formação cultural e a transformação social rumo ao desenvolvimento humano.

Link: http://www.sescsp.org.br/sesc/programa_new/busca.cfm?atividade_id=7&unidade_id=10

é por aí...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

FUP Jim Dodge

"...A maior parte daquela semana, passaram sentados na varanda da frente, observando a primavera desabrochar e conversando sobre o que tinha acontecido. Miúdo contou diversas vezes a vovô que tinha matado FUP acidentalmente, como esta foradespedaçada, aparentemente tentando proteger um porco que, ao que se supunha, devia odiar, e como depois, conforme vovô testemunhara, tinha se desenrolado, totalmente crescida e empenada, de dentro do corpo do Cerra-Dente, voando para longe. Ele queria saber como isso podia ter acontecido.
E a cada vez vovô Jake lh respondia essencialmente a mesma coisa:
- Não tenho a menor idéia. Mas posso pensar nas razões: ela viu que ele estava morrendo e queria que você respeitasse sua morte, o deixasse morrer sozinho; ou não o queria ver levar um tiro estando preso na cerca; talvez achasse isso desonroso; ou talvez tenhamos suposto tudo ao inverso, que o Cerra-Dente estivesse tentando tirá-la daquele buraco para fazer sua merenda da meia-noite, quando na verdade podia estar tentando salvá-la, ou, pelo menos, talvez ela achasse isso. poe ter sido tudo isso e mais ainda, ou nada disso. E de que jeito ela foi parar dentro daquele porco, e fora, eu não sei direito. Algumas coisas não é possível explicar, talvez até a maioria das coisas. É interessante pensar nelas e fazer alguma especulação, mas o principal é que se tem que aceitar as coisas como são, e seguir em frente com aquilo que se entende."

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Um sempre no nunca

Um dia, enquanto buscava frases aleatórias no Google que pudessem me despertar da insalubridade, a qual o tédio expõe muitas vezes os nossos ossos, li rapidamente algo do tipo: a vida não é feita de acertos e de erros, mas de percepção e ocultamento do que queremos.
Honesto, não? Na verdade, não é que erro, só me oculto, e ainda, não é que acerto, mas percebo a possibilidade de validar o que quero. Parece simples, bem simples, é só afinar o instrumento potente que é a nossa racionalidade, estufar o peito, soprar a poeira dos devaneios e encontrar um belo peixe prata com o rabo dourado nos olhando fixamente ao centro de nossa consciência: Me pegue! Vamos, me fisga!
E é aí que tudo começa: não é para mim que ele está olhando! Ou melhor: Humm... Meio duvidoso o jeito como movimenta as barbatanas! E ainda: Ih, a água dessa lagoa me parece tão gelada! Aliás, qual será a profundidade? Aquilo é um redemoinho? Posso morrer! E ternamente: Para que tirá-lo de lá, não devemos maltratar os animais! Fora que, se amanhã eu estiver com o Fulano, ele colocará a isca certa para pegar o peixe...
O coração escancarado, desejoso, dá o verdadeiro grau da vida: zero. Não agüentamos o que nos coloca em evidência e rapidamente névoas de pensamentos, impressões e emoções nos oculta de nós mesmos, até que um dia ao passarmos em frente a uma megastore de brinquedos, sacamos o nosso cartão de crédito e compramos uma réplica de plástico de um peixe, sem precisarmos ter entrado na água, sem passarmos pelo medo de nos afogar e sem experimentarmos o gosto metálico da frustração de tudo se tornar um nada. Mas a teimosia é tanta, que a euforia nos salva e voltamos para casa crentes de que sabemos dar felicidade a nós mesmos, abrimos a porta, vamos até a mesa da sala e colocamos o brinquedo sobre ela: vamos meu amigo, dance! E ele dança! Cante, e ele canta! Na hora de dormir, a melancolia nos invade, choramos e acreditamos não saber o porquê: o que há de errado comigo? Pago impostos e sou educado com estranhos! E o peixe prata de rabo dourado volta à profundeza de onde demorará um bom tempo para retornar.
Mas há pessoas que percebem o peixe, mas que ignoram o mistério que transpassa o seu olhar, o que dá na mesma de não percebê-lo e assim, banalizam tanto a experiência que num mesmo samburá carregam o peixe prata com rabo dourado com os que vivem em lamaçais, até que na hora de despejá-los no tanque não reconhece a diferença entre os demais e automaticamente sente-se poderoso diante da quantidade. Porém, a história que começa a ser tramada é a de um solitário destino.
Nos dois casos ocultamos e, portanto, erramos. Voltamos ao degrau debaixo, quando estávamos alavancando para um novo lugar em nós mesmos, que estava prontinho para ser vivido e significado, fecham as portas para só depois de muito tempo tentarmos novamente penetrar nesse espaço.
Agora, há quem percebe o peixe e o reconhece: você por aqui? Mas tão já? Suas barbatanas na são como eu as imaginava, mas ainda assim são bonitas! A lagoa é profunda, mas vou até ai, gosta dessa isca? Consigo te tirar sozinho daí, aliás, somente eu conseguiria, seu olhar canta aquilo que sempre soube e me preparei gradativamente para reconhecer.
Bum!: e o acerto nos alavanca àquele lugar que desconhecíamos e ansiávamos penetrá-lo, vivemos o novo, além das aparências, absorvendo a essência do que se ama ou de quem se ama, sem nos tapearmos com réplicas do que queremos, ou por medo fingimos não termos mais esperança e banalizamos o chamado, ignorando que estávamos um passo de sermos felizes.
Erro ou acerto? Ora um, ora outro. Errar não é tão difícil assim, mas acho que é uma obrigação buscarmos o que nos faz bem, não importa o que seja ou quem seja, até entramos na dinâmica do espiral da nossa vida e descobrirmos que acertar é fluir, perceber e optar, evitando o desconforto de ignorarmos o que nos incomoda: os peixes dourados prontos para serem fisgados.

domingo, 25 de maio de 2008

I am a bird now

entrem no www.mojobooks.com.br e confiram o meu conto I am bird now.

sábado, 24 de maio de 2008

Intermitências


I A Alvorada
Apesar do horário, 6:30, o sol tardava em se impor, uma fraca luz, juntamente com a neblina típica daquela região, transformavam o jardim num labirinto sensorial. As plantas salpicadas de orvalho indicavam mais uma manhã gelada, o que deixava Ana extremamente frustrada, pois era o último dia para as roupas secarem. Fazia dois dias que, sob o alpendre dos fundos da casa, no varal, a calça jeans, a camisa xadrez e a blusa de lã vermelha continuavam úmidas, o que comprometia sua volta à cidade, pois não trouxera outra muda. Não gostaria novamente de usar as roupas de Martim, mesmo ele não se importando.
Encaminhou-se ao fogão, acendeu uma das bocas e colocou água para ferver. O café sairia daqui uns minutos e mais uma vez o tomaria sozinha. No dia anterior, Martim tinha partido de madrugada para consertar o gerador de um sítio a trezentos quilômetros dali. Passou o café no coador de pano, sentindo o aroma da bebida, deliciando-se com a breve solidão, que antes a perturbava: “Ele não será daquele tipo de homem que abandona a esposa e os filhos, já teria reconhecido... Sou amiga da minha intuição”.
A aquisição do sítio em Gonçalo foi mais importante para Ana do que seu próprio casamento, que feito às pressas, parecia atender mais aos familiares do que o próprio casal, que era avesso a cerimônias tradicionais. Entretanto, com a gravidez imperceptível no ventre, mas evidente pela feição de plenitude que Ana radiava em seu rosto, a jovem de vinte sete anos casou com um belo vestido branco, para que na saída da igreja fosse recebida pelos amigos, com chuva de arroz. Uma nova fase em sua vida se iniciava silenciosamente, como quando um gato boceja na escuridão.
“Geléia de framboesa. Ao menos uma compota, dá tempo de fazer”.
Lá fora, os pés de framboesas carregados contavam a história da família que ali morou: a pedido da matriarca, a cada nascimento de um filho, o pai plantava duas framboeseiras. Quem havia descoberto essa tradição familiar, por acaso, foi Martim, que logo no primeiro dia de ocupação da casa, ao colocar o samburá de pesca no prego atrás da porta da cozinha, encontrou não só o nome de cada filho entalhado, como também a receita de uma geléia intitulada: ange gardien.
“Sofia levará pão integral com geléia para a escolinha”.
Ana passou a mão sobre o ventre, e sem perceber, legitimou o seu desejo íntimo: era a primeira vez que não se repreendia por querer uma garotinha, já que até bem pouco tempo atrás, quando surgia em sua consciência a personificação do bebê, o imaginava menina, daí o fato de mudar repentinamente de humor. Martim, nesses momentos, quando flagrava a esposa com o cenho franzido, olhando para o nada, apreendia suas feições como indício de maturidade, de concentração de responsabilidades, chegando até mesmo a se tornar mais atraente, parecendo-se com uma outra Ana que não conhecia, mas que sabia de sua existência e já lhe amava. Entretanto, a jovem mulher, perto do que imaginava proibido dentro de si, sentia-se mal, e rapidamente corrigia seu pensamento e suas emoções, pois não achava de bom tom ter suas predileções acima da sabedoria da natureza, da providência divina, que tramava misteriosamente o que seria a excelência para a vida dessa nova família.
“Talvez não trabalharei no primeiro ano de vida de Sofia.”

II Ange Gardien

O ano de 1998 foi triste para Clair, seu esposo, Pedro, falecera. Sentada no sofá com uma amiga, que viera do interior visitá-la, a mulher de cabelos avermelhados e olhos castanhos escuros acariciava as franjas da manta do sofá, após ter dito que mesmo não sendo mais jovens, ainda procuravam namorar às manhãs.
Estava numa festa de amigos num apartamento, quando avistou um belo rapaz escorado no batente da porta, com uma cerveja na mão. A barba preta, os olhos escuros chamaram a sua atenção. Falava entusiasmado com um casal, que atento, na expectativa, sorriam se preparando para gargalhada.
“Parece com o Olavo. Será o Olavo?”
- Quem é aquele moço na porta? – disse Clair ao dono do apartamento
- Pedro. Terminou Sociologia o ano passado. Quer conhecê-lo?
- Muito parecido com um amigo meu...
O que levava Clair lembrar de Olavo em Pedro, era algo que ainda não sabia, mas que logo na primeira conversa descobriu: I Love supreme para ouvir à noite, quando está se preparando para partir. Em 67, Paris convocava a inaudita paixão dos milhares de jovens espalhados pelo mundo, como o som daquele apito, o qual apenas os cães ouvem, passando despercebido aos ouvidos humanos: os rumores de maio de 68 chegaram muito antes àqueles que não se prendiam ao que Clair deliciava-se, mesmo repudiando-se: a segurança da vida aburguesada. Afinal, Jules e Jim era muito mais anárquico do que qualquer líder estudantil. Pelo menos, seu coração na intensidade de sua delicadeza aspirava uma vida mais anônima e não menos visceral. Podia sim ter mais de um amante. Podia sim não se casar. Podia sim voltar-se apenas ao trabalho: a curadoria do museu e suas criações.
Com relação a Pedro, esse partia mas para voltar em breve, passaria seis meses na casa de seus pais no interior de São Paulo, antes de começar o novo trabalho numa empresa estatal. Quando voltou, mudou-se para o ateliê de Ana.
“A sua existência em minha vida era algo que não me pertencia, talvez estivesse amadurecendo, não cobrava mais acertar o caminho. Aceitei, pela primeira vez, o que a vida quis me dar. Foi com Pedro que me libertei, os meus desejos não chegavam até ele de modo a fundir-se. Estranhamente, recuavam-se e dentro de mim, me obrigava abrir mão de sua presença paradoxalmente, pois para estar ao seu lado, primeiramente, tinha que estar comigo.”
- Quer com geléia? Fiz ontem, dessa vez experimentei com açúcar orgânico – sorriu Clair, recuperando-se das lembranças e encaminhando sua amiga até a cozinha.

III - O corpo, a potência e os afetos

Chovia à noite, e dentro do vagão do trem, Martim encostava o rosto no vidro da janela para ver a chuva enrugar a superfície do rio. O combinado era de que, ao abrir o envelope do teste, Ana ligaria imediatamente para dar a resposta. Não queria esperar a hora de chegar em casa, estava ansioso demais. No trabalho, pouco falava e, em sua mesa, fazia os cálculos com um pouco mais de dificuldade com relação aos outros dias. Casaria. Estava decidido. Mudariam para um lugar mais amplo e como quando percebemos que um hábito não mais satisfaz a demanda de novos desejos, criaria, com um tanto de sofrimento, um novo homem, o qual ansiava tornar-se.
“Coloque as framboesas em uma panela e amasse-as levemente com ajuda de um garfo. Adicione o açúcar e o suco de limão, misture e leve ao fogo. Assim que ferver, abaixe o fogo e cozinhe até obter a textura desejada, fazendo um teste de vez em quando em um prato para verificar a textura porque ao esfriar a geléia irá ficar mais espessa. Coloque em vidros e guarde na geladeira.”
Sentada na cadeira de balanço no alpendre da frente da casa, Ana, enrolada em um cobertor, esperava o fim do dia, queria voltar à cidade e estava com saudade de Martim. Na verdade, estava um pouco amedrontada com o fato de estar grávida. Seria mãe, ensinaria o que não sabia, teria que fingir a constância de um mundo caótico, que por termos geléia no fogo e árvores estáticas em dias de chuva, acreditávamos conhecer o sentido da vida.
- Faz tempo que estão morando aqui? – disse uma senhora ruiva, que saia lentamente de uma senda que ligava a casa de Ana com a dela. Parou um minuto, observou atenta os brotos de bambus e murmurou algo para si. Ana não se assustou, a circunspeção em que se encontrava lhe protegia de fragmentar suas emoções aos estímulos externos.
- Como? – levantando-se com dificuldade, pois o pé se enrolara no cobertor.
- Mudou faz quanto tempo? – Clair sorridente aproximou-se da jovem.
- Compramos há quatro meses. Temos que reformar. Muita coisa precisa ser feita.
- Vai gostar de morar aqui. É bem tranqüilo e seguro.
- Já gosto. Adoro as framboeseiras, aliás, preciso entrar, tem geléia no fogo. Gostaria de me acompanhar?
Ana abriu a porta para Clair entrar, notando a beleza da senhora. Do xale de lã preto, rosas vermelhas e folhas verdes adornavam seu entorno, que pendiam a cada passo dado. Os cabelos ruivos, presos nas laterais por grampos dourados, conservavam um brilho que poderia ter sido perdido com o passar dos anos, enquanto a corpulência juntamente com os modos serenos compunha um magnetismo que atrai os que buscavam uma vida poética.
- Eu também tenho essa receita na porta da minha cozinha. – disse Clair, que friccionava seus dedos nas letras talhadas – Ajudei Beatriz a desenhar estas framboesas.

IV- O crepúsculo

- De quantos meses?
- Sete.
“Era maio, Maria veio ao meio dia e pouquinho. Depois de um ano e meio, em maio também, veio Guilherme. Pedro queria mais filhos. Mas a gravidez de Guilherme me desestabilizou emocionalmente. Era difícil aceitar que não desejava essa gravidez. Queria participar da Bienal. Queria me dedicar mais ao trabalho. E mesmo com ele no colo, amamentando, ainda o rejeitava. Não queria o filho.”
O vidro sobre a pia estava pronto para armazenar a geléia. Clair encantou-se com os movimentos de Ana, que mais distante do que o necessário, tomava o cuidado de esticar os braços o mais longe possível para não se queimar e que, com certa flexibilidade e destreza, enchia o pote com o caldo rubi.
- Menino ou menina?
- De que adianta saber o sexo? Muda a predileção?
Com quem poderia compartilhar suas fantasias? Seus medos? Se Clair não tivesse aparecido, Ana ficaria novamente melancólica, fato este que estava acontecendo com freqüência e, que pega de surpresa, envolvia-se sem escolha no turbilhão de emoções, sem tempo de suspender-se em reflexão, e como uma criança, aliviava seus temores na crença de que quando o tempo melhorasse se sentiria melhor, ou quando a roupa estivesse seca e principalmente, quando Martim retornasse, voltaria a ser o que era. Mas o que era e como seria daqui para frente?
- Tenho um casal de filhos. O meu segundo foi uma surpresa.
- Este foi uma surpresa! – as duas mulheres riram.
Guilherme ficou durante quatro meses aos cuidados da sogra de Clair, que preferia ficar sozinha depois de amamentar e que prolongada suas angústias, resolveu, com acompanhamento médico e terapêutico, dedicar-se à arte. Naquele momento, as coisas ficavam menos dolorosas.
- Gostaria que fosse uma menina – Ana disse, desabafando.
- É uma delícia ter uma garotinha.
- Não sei se ficarei feliz se tiver um menino. Posso?
- Como?
- Ficar triste se nascer um menino...
As framboeseiras balançavam ao vento, algumas folhas roçavam nos vidros da janela da cozinha: uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete árvorezinhas. Beatriz, havia tido três filhos. Quando Clair ainda estava deprimida, a antiga moradora da casa, onde Ana agora morava, chamou a vizinha para conhecer seu quintal. Pedro, a estimulou a ir, não agüentava mais ver sua esposa triste, estava preocupado com sua saúde e até mesmo com a de toda família.
“O dia estava quente, lembro que usava um vestido amarelo florido. Beatriz me deu uma muda de framboeseira para plantar em seu quintal: - Plante. É uma arvorezinha vigorosa – disse a mim. Logo depois, me trouxe até a cozinha e talhamos o nome de Guilherme na porta. Fizemos geléia e levei um pote para Pedro, que com sua mãe e Catarina, minha primeira filha, se deliciaram. Naquele dia, amamentar foi menos doloroso. E logo depois, em três meses Guilherme voltou aos meus braços.”
- Ficar triste se nascer um menino? Pode sim.
- Acho errado.
- Não somos obrigadas a amar todas as condições e até mesmo todas as pessoas.
- Me esforço para não desejar. Acho mais sensato aceitar a vida do jeito que é.
- Só fruta? – disse Clair experimentando a geléia.
- Como? – titubeou Ana.
- Sem transformação, sem acrescentar os desejos, sem fundi-lo: o doce, o azedo, a fruta. Misture e dará uma bela geléia.
Lá fora, um carro estacionava, era Martim com roupas novas para Ana e mais uma muda de framboesa.