terça-feira, 17 de março de 2009

Flores no concreto

Caminhar pela Av. Sumaré tem suas surpresas: os lírios, as pessoas, os carros... Mesmo em meio ao concreto, à fumaça, a beleza resiste, convidando-nos.
Diariamente, leio o Sutra do Lótus, cultuo os espíritos dos meus ancestrais, para que possamos ter um caminho mais iluminado sob a proteção dos budhas.
Olhar as flores, me remete a origem do Zen Budismo - o qual pouco conheço. Mas a história é linda, vejamos:

Segundo a história tradicional, a primeira transmissão “mente a mente” (ou “coração a coração”) ocorreu na Índia, durante uma palestra de Buddha a uma grande assembléia na montanha Gridhrakuta, que reunia mais de mil e duzentos discípulos.
O Buddha Shakyamuni, com um sorriso inspirador em sua face, elevou o braço, segurando apenas uma flor de lótus dourada. Neste momento, houve um silêncio total.
Nenhum dos discípulos arriscou-se a dar nenhuma interpretação e, durante esse longo momento de impasse, seu discípulo Mahakashyapa (famoso por sua extrema sisudez) respondeu-lhe com outro sorriso misterioso. Ninguém da assembléia entendeu o sentido e significado do feito de Buddha e, mais tarde, ele anunciou que o mais profundo Dharma da verdade tinha sido transmitido ao discípulo Mahakashyapa.

Disponível: http://www.budismosimples.kit.net/ [capturado em 17 mar 2009].




quinta-feira, 12 de março de 2009

My pillow...

Deitamos um ao lado do outro.
Exaurimos a paciência em nos doar.
Ignoramos o chamado do dia
e quando chega o crepúsculo,
meio a vacilações de olhares,
a finitude eclipse segredos sobre a gente:
- Vista a roupa, mulher!
Não somos anjos. Nem deuses.
Apenas homem e mulher.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Domingo


“Aprendi com as primaveras a me deixar cortar para voltar inteira”.
Cecília Meireles


A corrida matinal a deixou mais entorpecida do que desperta. A vermelhidão das pontas dos seus dedos da mão indicava o retorno a sua casa, o frio não passara e mesmo o parque, nessas manhãs tão gélidas, ser um convite a contemplação do lago silencioso, dos cisnes engalfinhados uns aos outros e dos lírios à margem sempre dispostos às intempéries como moças desinibidas e que jocosas procuram atrair a atenção de homens tímidos, nada fez com que Marie ficasse um minuto a mais naquele lugar.
A proposta para esse domingo era inclusive tirar fotos da paisagem, até mesmo porque era uma tarefa a ser entregue na semana seguinte no seu curso de fotografia. Não me sinto à vontade, um chocolate, ver os e-mails, ligar para papai...
Há dias como este: a roda de nossa vida íntima começa a parar silenciosamente. Marie ainda era convidada a fazer escolhas, mas preferia ignorar, mesmo pressentindo que os cercos que construiu para si estavam ruindo. Caminhava pelas alamedas do parque aparentemente feliz, apegada a hábitos, a pretensões que não serviam a mais nada a não ser àquela parte sua que detesta a ponto de não olhá-la: a sua covardia de dar o que precisava, e, que por incrível que pareça, foi a que mais cultivou nos últimos vinte e cinco anos, fortalecendo-a como um bebê recém-nascido que necessita de todos os cuidados: os brônquios fracos foram reinstaurados nas duas semanas que ficou na estufa do berçário e isso equivale ao dia em que Marie resolveu reformar o banheiro de sua casa com o seu primeiro aumento de salário. Como não? Na vitrine, a bela pia de mármore a convidou a ingressar à serenidade, ao pacto comum dos que sabem que estão-indo-bem, enquanto o espelho jateado a la rococó ainda lhe restitui uma extravagância permitida.
À porta do apartamento, com o cheque em mãos, não olhou nos olhos do pedreiro que terminara a obra, e este ao entrar no elevador e ver assinatura daquela jovem decidida, mas um tanto solitária, desejou desposá-la com sentimentos cálidos de quem experencia o vazio de uma Nossa Senhora, a qual carregava uma imagem dentro de sua carteira. Sentiu-se também solitário, olhou para a câmera vigia e sorriu sem graça.
Na cozinha, logo após chegar da caminhada, preparou uma xícara com chocolate fumegante, que desenhava um torvelinho escuro que surgia e desaparecia, enquanto o tilintar discreto do metal à porcelana desafiava o silêncio maior daquela manhã.
Era junho e aos quarenta e dois anos Marie se encontrava sozinha no apartamento na região sul de São Paulo. Bem agasalhada, com um conjunto de abrigo esportivo, poderia passar tranquilamente por uma mulher de trinta e poucos anos, mesmo não sendo esse o objetivo de suas caminhadas e das suas incursões a cursos artísticos, pois, na verdade, fazia o que tinha que ser feito, afinal, era uma mulher que acordava todos os dias com a preocupação de constituir-se ativa, capaz de ao encontrar a secretária de seu consultório já saber as manchetes do principal jornal da cidade, uma vez que havia lido no carro a caminho do trabalho. Quem sabe à noite não encontraria Pedro?
Preciso ver os e-mails... Caminhou até um dos quartos, onde fizera de escritório.
Era tão preocupante deixar a irmã mais nova em outro país, trabalhando em uma estação de trem... Tudo bem que ela demonstrara uma maturidade impressionante, lembrando que até dois anos atrás, período em que resolveu deixar o Brasil, meses antes preferia às noites fora de casa, às relações conturbadas com um namorado de início de adolescência e à rebeldia a tudo que lhe ofereciam como O Caminho. Numa tarde, enquanto assistiam televisão Marie e seu pai, Camille prontificou-se como uma vigorosa planta que sobe o muro, e, ocupando seu o espaço disse: me inscrevi em um curso de alemão, vou para Berlim, tenho algumas economias, vou me fazer o bem.
Me fazer o bem?

Marie,
Não pude me conter, na semana passada, ao mexer no meu guarda-roupa encontrei um envelope com umas fotografias, e já no dia seguinte dei um jeito de escaneá-la. Olhe!: eu, você e o nosso vizinho de infância, lembra? Gustavo. Quantos anos você tinha? Dezenove? Creio que eu tinha sete. Que cabelo bizarro! Olha a calça! Olha onde essa cintura vai parar.

Saudades,
Abço pro papai,
Camille

Se quisesse, a roda de sua vida íntima ainda poderia movimentar-se naquela manhã, levando a lugares dentro de si que lhe indicassem a escolha de vestidos mais vibrantes, a viagens ao deserto – lugar que sempre chamara sua atenção, mas como era uma predileção, preferia passar desapercebido. Foi um dia, com Camille, que ao assistiram a National Geographic o deserto do Atacama lhe pareceu muito mais atraente do que a viagem anual que fazia com suas amigas de consultório -, também seria bem possível que ao encarar as prateleiras que trocara para colocar os seus livros, sentiria um desânimo maior. Fazia tempo que não namorava. Mas como quando encontramos um céu cheio de nuvens, mas que ainda é possível ver o azul tranqüilo por detrás delas, ainda era possível fazer escolhas naquele domingo.
O silêncio convidava. Uma sensação quente, acolhedora dentro da mulher surgiu brevemente, quando ao olhar para fotografia, Marie resolveu dar um zoom para observar minuciosamente os seus olhos. Tinha vinte anos, acabara de ingressar na faculdade de fisioterapia, a escolha foi feita a partir dos períodos em que, nos últimos anos que cuidou de sua mãe, que faleceu de uma doença degenerativa permeada por derrames, observara a fisioterapeuta dedicar-se ao processo de reabilitação – mesmo todos sabendo que dificilmente a matriarca sobreviveria. Mas havia milagres espalhados pela casa, mínimos, mas verdadeiros, era quando sua mãezinha conseguia voltar a pegar a colher e segurá-la por dois segundos, de modo que os olhos de Marie e da fisioterapeuta se tornavam mais brilhantes. À sua frente, frágil, via a Vida batalhando o quanto podia, o teor daquela dinâmica estava mais próximo da sinceridade e o empenho de formigas que nascem para trabalhar e cercam de cuidados sua rainha até o cessar de suas vidinhas, do que alguém que consegue repentinamente sair de uma cadeira de rodas e voltar a caminhar. Era isso que queria para si: potenciais vastos. Trabalharia com reabilitações e reintegrações de vidas.
Perscrutou seus olhos na fotografia, deu mais zoom, lapidou-os com suas lembranças, seus desânimos, esperanças e viu lá fundo do vazio um diamante. Uma imagem saltara a sua frente, seria um delírio?
Era domingo. Algumas famílias estavam postas à porta da igreja, um pai com seu filho comprava remédios na farmácia. Certos distintos preservavam seus anseios de coração em bancadas de bar, bebendo uma, certificando-se de que incorruptíveis viviam na terra mais pura do que a hipocrisia dos anúncios de propaganda e dos sorrisos dos homens bem vestidos. Um pássaro morria em seu ninho doente, sozinho, sua mãe voara para buscar alimento, seu corpo já diminuía a temperatura. Três mocinhas iniciavam-se com os rapazes numa casa de praia. Uma caneta caia no chão. O telefone tocava. A fotografia enviada informava: diamantes.
Afastou-se para trás, estava um pouco trêmula. O que vira? Não quis acreditar. Dando uma ordem de comando falou para si: vai, caminha, liga para o seu pai, ele depende de você, não há ninguém mais da sua família...
Os livros na prateleira: fisioterapia neurofuncional; princípios neurofisiológicos da facilitação neuromuscular proprioceptiva. E agora, era uma parte sua que precisava se reinserir. Bio-psico-social? Um nome eficiente, mas pouco proveitoso comparado com o delírio que acabara de ter. Não queria falar isso para ninguém. Era tão luminoso, belo... Havia um segredo nisso tudo que talvez não chegaria a um fim e então teve medo de acolhê-lo. A tristeza varou o seu peito, uma onda de descrédito a tomou por inteiro, não sabia o que lhe dar, descobriu infinitamente covarde.
Levantou-se foi até a sala, trêmula, pegou no telefone e ligou para o seu pai:
- Como está?
- Aqui bem, fui caminhar...
Não prosseguiu em suas palavras, seu pai falava do encontro na noite passada com seus amigos do baralho.
- Não sei ser o que sou...
– O que disse?
- Preciso cortar o cabelo...
– Mas hoje é domingo?
- É. Domingo. Passo aí mais tarde.
O apartamento era imenso. Nunca o habitara por completo e por mais que houvesse móveis, livros, mantas, objeto de decoração, fotografias na parede, nada parecia estar de acordo com o que nem sabia que desejava sempre. Resolveu sentar na poltrona, encolheu-se. Teve apenas um namorado, envolveu-se com dois pacientes seus e nunca sofrera por não ter filhos. Todas as escolhas foram estéreis? Não quis encarar a velha que teria que cuidar para o resto de sua vida, ela mesma. Poderia viajar para o Atacama. Poderia encontrar um namorado, era charmosa e cuidava do corpo, poderia adotar uma criança, visitar Camille... Ai, como é desesperador ser!
Sua mente agitada contrastava com a impavidez da decoração do seu apartamento. O gorjeio do pássaro cortando o céu, lhe remetia a sensação de estar se destoando de toda aquela maquinaria chamada Vida e o barulho do elevador subindo e descendo vindo do hall lhe arrancou o suspiro: Para quê?
Mas o delírio ainda estava ali, impregnado à sua alma, lhe convidando a desnovelá-lo e pobre mulher, presa na ambivalência de aceitar ou não o que poderia salvá-la, ignorou-o com a força de um búfalo - mais uma vez o bebê recém-nascido, sua covardia, fortaleceu os seus brônquios na estufa. Abafou essa experiência com exercícios de respiração durante umas duas horas nada fez com que despertasse, e mesmo frases como Mínimas mas verdadeiras e imagens cheias de luzes vagarem dentro dela, Marie optou em deixar o apartamento e visitar seu pai. O problema é que a vida não tem fim.
Amanhã, caminharia novamente e tudo voltaria no lugar certo...