sábado, 27 de novembro de 2010

Todos à mesa

Preciso compartilhar este trecho epifânico que se encontra no segundo volume do Em busca do tempo perdido, À Sombra das raparigas em flor, do Proust. Não digo que parece uma trovoada, no meio de um céu nebuloso, pois a luminosidade dessa fala da personagem Elstir, ao responder para o protagonista, está mais próxima de um amanhecer em que todos podem se sentar à mesa para tomar um belo café-da-manhã, independente dos trajes que estão usando, dos sapatos velhos, das noites mal dormidas, dos excessos que uma alma às vezes, comete. Simplesmente, fantástico!

Referência Bibliográfica:
PROUST. M (2006). À sombra das raparigas em flor. Trad. Mario Quintana. 3a. ed. São Paulo: Globo.

"Seria, pois, possível que esse homem genial, esse sábio, esse solitário, esse filósofo de palestra magnífica e que dominava todas as coisas fosse o ridículo e perverso pintor protegido outrora pelos Verdurin? Perguntei-lhe se não os tinha conhecido e se não o chamavam então de sr. Biche. Elstir me respondeu que sim, sem dar mostras de confusão, como se se tratasse de um tempo já passado de sua existência;não suspeitava a extraordinária decepção que me causou, mas ergueu os olhos e leu-a em meu rosto. No seu se espelhou um ar de descontentamento. Como estávamos quase em sua casa, outro homem de menos inteligência e coração que ele houvesse despedido secamente, sem mais nada, fazendo depois o possível para não se encontrar comigo. Mas Elstir não fez tal coisa; como verdadeiro mestre - talvez o seu único defeito do ponto de vista da criação pura fosse o de ser um mestre, neste sentido da palavra mestre, porque um artista, para entrar na plena verdade da vida espiritual, deve estar só e não prodigalizar o que é seu, nem sequer a seus discípulos - procurava extrair de qualquer circunstância, referente a ele ou a outrem, e para melhor ilustração dos jovens, a parte de verdade que continha. E preferiu, a frases que pudessem vingar seu amor-próprio, outras que me instruíssem.
- Não há homem - disse-me - por sábio que seja que em alguma época da sua mocidade não tenha levado uma vida ou não haja pronunciado umas palavras que não lhe agrade recordar e que quisesse ver anuladas. Mas na verdade não deve senti-lo inteiramente, pois não se pode estar certo de ter alcançado a sabedoria, na medida do possível, sem passar por todas as encarnações ridículas e odiosas que a precedem. Bem sei que há jovens, filhos, netos de homens distintos, com preceptores que lhe ensinam a nobreza d´alma e elegância moral desde os bancos escolares. Talvez nada se tenha a dizer da sua vida, talvez possam publicar e assinar tudo quanto disseram, mas são pobres almas, descendentes sem força de gente doutrinária, e de uma sabedoria negativa e estéril. A sabedoria não se transmite, é preciso que a gente mesmo a descubra depois de uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar, e que ninguém nos pode evitar, porque a saberoria é uma maneira de ver as coisas. As vidas que o senhor admira, essas atitudes que lhe parecem nobres, não as arranjaram o pai de família ou o preceptor; começaram de modo muito diverso; sofreram a influência do que tinham em torno, de bom ou frívolo. Representam um combate e uma vitória. Compreendo que não mais reconheçamos a imagem do que fomos num primeiro período da vida e que nos seja desagradável. Mas não há que renegá-la, porque é um testemunho de que temos vivido de acordo com as leis da vida e do espírito e que dos elementos comuns da vida - da vida dos ateliês, dos grupinhos artísticos, se se trata de um pintor - tiramos alguma coisa de superior a tudo isso.
Tínhamos chegado à porta de sua casa."

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O BELO

Eu gosto de ler abrindo caminhos ensolarados,
de ouvir música com timidez e desajeito,
de assistir um filme com o pudor de quem se descobre caído - como Adão e Eva, no Paraíso.

Gosto de capturar o olhar de uma criança,
quando ela sintoniza o invisível
e depois o compartilha em segredos gestuais:
Eu acho que ele gosta de você...

Gosto de ver homens construindo grandes avenidas, em São Paulo, sem titubear - como se fossem antigos pescadores reencarnados no asfalto seco.

E gosto de antecipar a imagem do perfil do meu namorado,
na minha mente-coração, antes que o sol entre pelas frestas da janela e o acorde.

Todas essas, figuras da rosácea
que eu decalquei nos vitrais dos meus sentidos,
tremeluzem a pureza da minha emoção descomprometida:
inauguro, na surdida da prosa da vida,
a ausência de regras e críticas de quem não enxerga a beleza.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Destruição de Carlos Drummond de Andrade

Os amantes se amam cruelmente
E como se amarem tanto não se veem.
Um se beija no outro, refletido
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
Pelo mimo de amar: e não percebem
Quanto se pulverizaram no enlaçar-se
E como o que era mundo volve a nada.

Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
Que os passeia de leve, assim a cobra
Se imprime na lembrança do seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
Deixaram de existir, mas o existido
Continua a doer eternamente.