domingo, 20 de dezembro de 2009

DESPERTAR

"Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão/Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo". Sylvia Plath


Por alguns instantes, retornou a olhar-se, no espelho. O dia estava, extremamente, convidativo para um passeio primaveril. Mas decidiu ficar assim: admirando-se em seu próprio mistério. Lembrou-se, com certa vergonha e raiva, o que haviam dito para ela quando, aos 14 anos, ficava meditativa, em seu quarto, com dois livros intermináveis, os quais lhe traziam alguma dificuldade na leitura: Retrato do Artista quando jovem e Mrs. Dolloway, mas que os compreendia com o coração. Disseram asperamente: "Você se acha muito sabida, né? Onde pensa que vai aprendendo a não ser nada?". Queria fugir dali, daquele momento. Aquelas palavras continham apenas uma parte da verdade. De fato, ela não queria ser nada. Gostava da ideia de crescer como uma árvore frondosa, apenas cultivando para si bons sentimentos, pensamentos, ideais, não era ambiciosa como haviam lhe ensinado desde pequena. Mas como dizer isso às pessoas? Que desejava ser como as àrvores? A internariam, num hospício. Mas essa era a sua resposta para o mundo. Sentiu raiva de si mesma e de sua irmã, que havia lhe machucado com aquelas palavras.
"Será que saio para dar uma volta pelo bairro?". O rapaz que conhecera há pouco tempo prometeu ligar mais à noitinha, para irem ao cinema. Gostou dele. Era um rapaz simples, que poderia ser uma companhia interessante para os dias de solidão, mas ainda não era quem sabia que guardava dentro de si: o cara, que apareceu entre tantos e foi embora sem dizer nada, na festa, mas que sua presença a tranquilizava como uma lembrança da infância mais doce. E ele, provavelmente, nem lembrava mais dela, mas ela sabia onde ele morava, o que fazia e inclusive quem amava.
Penteou o cabelo. Estava comprido. Precisava cortar, ao menos as pontas. Decidiu fazer uma trança como as garotas de uma fotógrafa que gostava demais. O dia diluia lá fora e ela queria apenas ficar assim: gastando-se em si mesma, mas nada de embotamento, ao contrário era a celebração da sua solidão. Gostava de habitar-se na ilha que supunha-se ser. Mistério à parte, queria apenas tornar-se frondosa como um jequitibá. Imaginou a irmã entrando no banheiro e falando, novamente, para ela: "Você se acha muito sabida, né? Onde pensa que vai aprendendo a não ser nada?". Sentiu-se confusa e triste. Mas encarou-se, no espelho, e disse para si: "A sabida virou uma escritora." Na clínica, descobriu que o nome disso era complexo e que eles faziam parte do que somos e que deveríamos tomar uma posição de responsabilidade a eles. E ela devolveu ao mundo de maneira sábia o que lhe oprimia, no íntimo, com suas leituras e sua poética. Foi a saída de sobrevivência da alma."Será bom sair com esse rapaz, ao menos me distrairei. Preciso esquecer quem me fez esquecer de mim mesma. Como no filme: viver por amor e não morrer por amor". O penteado o agradaria? Pois não havia nada mais delicioso do que sair com um homem, sentindo-se bela, fresca e esperançosa. "É como quando pegamos os peixes, na beira do rio, e os colocamos de volta na água." Olhou seu corpo, no espelho, e concluiu que o tempo a fizera muito bem. Quando adolescente, não tinha consciência da sua beleza e sensualidade particular, nem da sua inteligência, daí viver introvertida, ensimesmada, inclusive, ridicularizando a si mesma e aqueles que a ameaçavam como os seus modos de viver. Sem tempo para o nada.
Agora, era outra, e o seu coração generoso desculpava quem lhe havia machucado, sem compreendê-la. Desde criança era tida como diferente demais e todas as tentativas de adequação, que fizera foram frustrantes: quando ensinavam a ela um jeito eficiente de escrever, ela vinha com um livro feito à mão; quando pediam para desenhar uma casa, ela desenhava uma cabana, no meio da floresta; quando pediam para costurar um botão, bordava um pássaro, no bolso. Demorou muito tempo para descobrir o que a fazia, realmente, feliz e tudo que tinha em mãos agora era simples e genuíno, forte como o café que fazia todas as manhãs.
Lembrou-se de um sonho que teve, em um período de emergência psíquica - pessoas ao seu lado, em um trabalho burocrático, ameaçavam sua vida criativa, impondo-lhe um jeito estreito de ver um problema a ser solucionado: à noite, quem apareceu para ela foi a cantora Nina Simone, que mostrava o caminho para safar-se dessa situação, apresentou-lhe um homem branco de barba ruiva como se fosse seu pai e que este estava traindo sua mãe, que arrumava uma cozinha, obsessivamente, com ela, a cantora de blues. Acordou sobressaltada, mas sentiu-se equilibrada.
"Não importa o tempo que levei para chegar aqui DENTRO de mim, cheguei." Maquiou-se devagar. Passou delineador, nos olhos, e um batom pêssego assentou-se à sua boca pequenina. Mudou de ideia, daria uma volta pelo bairro, compraria umas flores para enfeitar a casa e à noite daria chance a amar, novamente.

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