sábado, 5 de dezembro de 2009

UM TIPO ESPECIAL

Um tempo de delicadeza era o que o desejava, enquanto arrumava as suas roupas e a de seus filhos, na cômoda. Uma passagem secreta, em alguma gaveta? Esse era o seu grande dilema, desde pequenininha. Sumir da aridez do cotidiano. Não nasceu para o que haviam delegado a ela: casamento, trabalho burocrático, sorrir para os vizinhos, mas agora já era tarde, havia preenchido todo o protocolo e, no fundo, queria apenas ser mais simples do que era, achava desnecessário todo o barulho feito pelo marido, pelas crianças, pelos vizinhos, pela televisão... Mas isso não significava que não amava a sua vida. Amava e muito, mas com culpa pois sabia-se distante, às vezes, quando ficava sozinha em casa descobria-se alheia a tudo o que construiu e como tática para sobreviver inventou uma história: ela era uma estrangeira que estava passando uns dias, na casa de uma família muito amorosa que precisava dela. Assim, encaixava-se, quando as coisas ficavam críticas. Queria um tempo outro, pois ficar à toa não era permitido, aos olhos dos outros, e quando faminta corria até o baú de sua juventude para beber de uma fonte vigorosa, recuava pois seria, no final, extremamente doloroso. Era o que já foi, mas ansiava por aquilo que não sabia. Uma vez, até sentiu vontade de perguntar para uma amiga, o seguinte: Já teve vontade de não sei o quê? De deixar tudo? De viver outra vida? Mas ao invés disso, serviu mais café e comentou sobre o penteado da nova estação. Como se traia!
O marido a amava, demasiadamente, mas não a percebia, achava-a graciosa, espontânea e, em alguns momentos, suas excentricidades o envergonhava, mas ela era bonita e elegante o suficiente para ele se encantar até o fim de sua vida. Ela gostava de ler poesia. Ele via televisão. Ela gostava de perambular à toa pelo centro da cidade, de olhar, minuciosamente, para as porcelanas chinesas, adivinhando seus mistérios. Ele dormia depois do almoço. E assim se amavam, mas cada dia que passava desejava alguém com quem pudesse contar seus pensamentos, suas ideias, mostrar seus mimos, alguém que pudesse entendê-la e assim a fazer se sentir viva, reconhecida, na sua essência, que nem mesmo ousava explorá-la. Sentada, com as camisetas dos filhos no colo, fechou a gaveta e a passagem secreta foi bordar pásssaros, naquelas roupas de linho. Ficou assim: encantada, consigo mesma, no paliativo da criação, esperando, esperando voar para bem longe.

Nenhum comentário: