quarta-feira, 2 de junho de 2010

Fotografia I - depois de você

O primeiro dia do ano vibrou todas as horas sem que chegasse a carta de Gilberte. Como recebi outras felicitações tardias, ou que se atrasaram pelo acúmulo de serviço no correio, nos dias 3 e 4 de janeiro ainda continuei com esperanças, mas cada vez menos. Chorei muito nos dias seguintes. E isso porque, renunciando a Gilberte, fora menos sincero do que imaginava, e ficara com a esperança de uma carta sua no dia do Ano-Novo. E ao ver que me fugia essa ilusão sem que eu tivesse tido tempo de prover-me de outra, sofria como o enfermo que esvaziou sua ampola de morfina sem ter outra à mão.
(À sombra das raparigas em flor, Proust, p.228)

Há o fator imponderável, em tudo o que disse, ontem, às pressas. Não vou relevá-lo, acho que estava mais nervoso do que eu, que fiquei em estado de choque. O melhor foi mesmo ir para cama, tentar domir, após aquela conversa. Com a luz da luminária acesa, com a roupa que usei o dia todo, esperei adormecer, com esperança de que amanhã, ao acordar, tudo tenha sido um sonho. Mas não, e tive pesadelos a noite toda, um deles: com três bebês doentes, no colo, atendi o telefone. Era a minha mãe, que queria contar quem era o pai das crianças. Acordei sobressaltada... Os bebês estavam morrendo. Pensei em ir até a sala e te abraçar, antes do fim. Mas quando vi, preferi me acomodar, na cama, e abrir caminho para a primeira, entre inúmeras noites sozinha. Mas hoje, juntos, sentados à mesa, sem tomarmos café como o de costume, ignoro o que de fato seja dormir sem você. Me sinto anestesiada e o que me vem à cabeça só é um blues do Johnny Lee Hooker, que fala que alguém precisa tomar juízo. O chá esfria. E nem de pijama estou. Sem senso algum e com a urgência de recomeçar preciso me monitorar. Mas a manhã se esvai. Do lado de fora da casa, crianças andam de bicicleta. Essa ingenuidade me agride, sabia? Pois descubro que um dia o grande lance da vida é: aprenda a driblar para se exasperar menos. Só pense, antes de resolver colocar todas as roupas dentro da mala e partir: quem é quem. Sempre pensei que traição era algo que nunca me ocorreria. Não de orgulho, mas achei que com a vida corrida que levávamos: foco no trabalho, na família, nos projetos em comum, nas descobertas individuais, mas compartilhadas, jamais caberia outra pessoa, pois isso nos daria, inclusive, mais trabalho. Errei o caminho. E o dia amanheceu azul, há sol e o frio nos assola, o que confere a tudo que tocamos hoje a impressão de que existe felicidade apenas para alguns. Ao menos feche a porta.

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