domingo, 26 de setembro de 2010

ANCESTRALIDADE (da série: diálogo com quem deveria ter tomado ao menos um café - Virginia Woolf)

"Do canteiro ovalado erguiam-se talvez centenas de caules que se entrelaçavam em folhas com formato de coração ou de língua e a abriam nas pontas pétalas vermelhas, azuis ou amarelas com manchas coloridas; e da floração vermelha, azul ou amarela da garganta brotava uma faixa direta, eriçada com o pólen dourado e ligeiramente amassada na extremidade. As pétalas eram volumosas o bastante para secarem à brisa de verão, e quando se agitavam, as luzes vermelhas, azuis e amarelas passavam de uma para outra, deixando na terra pardacenta uma mancha de cores emaranhadas."

Kew Gardens, Virginia Woolf

Queria ter dito muito mais a ele, quando depois de deixarmos as compras do supermercado, na calçada, resolveu repousar os braços, no meu ombro. Mas não consegui. Disse apenas que daqui para frente as coisas seriam diferentes e legais!, pois venceríamos passo a passo o desafio de habitarmos aquela casa velha - herança de sua mãe - nas próximas semanas. Naquela noite, por estar exausta por tudo o que aconteceu, nos últimos dias, senti a necessidade de antes de entrar a casa ir até o jardim, que ficava nos fundos. A ideia de morar numa casa sem portões que pudessem delimitar as suas fronteiras com a pouca vizinha, ao redor, com apenas sebes, árvores e arbustos, em plena capital, numa região central, me entusiasmava, pois vislumbrava a possibilidade de passar os finais de semana, arrumando um belo jardim para descansarmos e fazermos as nossas refeições depois de uma semana estressante.
A noite estava agradável, pois em pleno outubro, o calor dera lugar a um ameno frio, que nos permitia usar malhas leves e jeans. Estava muito escuro, de modo que ao penetrar no pequeno corredor, que levava ao jardim, tive que iluminar com a luz do meu celular o caminho feito de areia e seixos, causando-me enorme prazer em me mudar, definitivamente, para aquela casa.
Talvez, eu estivesse negligenciado o luto por qual passava, naquele momento, mas não podia mais ficar ao seu lado naqueles períodos de grave angústia, pois foram seis meses dando lhe suporte e preparo para o que sabíamos, que mais cedo ou mais tarde, aconteceria. Definitivamente, creio que sua mãe me compreenderia e ficaria até mesmo feliz em saber que ao penetrar, naquele jardim, tinha a intenção de descansar e planejar sua revitalização, que inclusive faria um bem danado a seu filho.
O chão, um mosaico de terra úmida, musgos sobre pedras e grama, me incintava a sentar em meus próprios calcanhares para sentir o cheiro que dali exalava para gradativamente, me estabelecer confiante de que logo mais ele não sofreria tanto.
Ao olhar para casa, na janela da cozinha, era possível vê-lo guardando as compras no armário. Aquela luz forte amarela que logo mais seria trocada por uma branca econômica me dava a sensação de conforto que tanto buscava, nos últimos tempos, injetando no meu espírito a ideia de que talvez, na hora de dormirmos, ele voltaria a me abraçar, a cheirar os meus cabelos e a rir, no meu ouvido.

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