segunda-feira, 30 de maio de 2011

QUADRO I (uma homenagem ao pintor Edward Hooper)

Uma mesa redonda no canto da sala, com cadeiras ao redor, seus assentos são estampados: lírios geométricos. A luz amarelada do plafon de cristal. O gato cochila na almofada que está sobre o sofá de veludo grená. A luz esbranquiçada do abajour incide sobre suas mãos: uma nova cicatriz. Está, distraído, sentado na poltrona. De onde estou, em pé, próxima ao rádio - finjo ouvir as notícias sobre o temporal de ontem, ao mesmo tempo em que folheio um revista feminina- vejo você adentrar na sua solidão. Já não é o rapaz promissor que trabalha na gráfica e recebe elogios pela sua agilidade e educação. Ilhou-se do cotidiano. Névoa e dúvidas. Partirá sem mim? Hoje, certamente, não. Está frio e em breve tomaremos o caldo de tomates com majericão que fiz. Acendo o cigarro e abaixo o volume do rádio. Não me nota e nem ouso lhe chamar atenção. Está bonito, olhando para o nada com alguma lembrança na mente. Atravesso a sala e sento no sofá para afagar o gato que ronrona. A sua solidão me exclui como o estampido de um trovão: não sei mais viver sem você. Seu livro está no chão: o autor se chama Melville. Capa de couro, título escrito em dourado, folhas amareladas e duas ou três marcações à lapis. Ao que tanto medita, meu amor? Gostaria mesmo que me convidasse para dançar, agora! Ou simplesmente ouvir um pouco sobre o seu dia, ou sobre a viagem que fez de navio, aos deozoito anos, e quem sabe, poderia até falar um pouco sobre esses livros que lê. Mas, no rádio, é apenas o noticiário. Nada de jazz. E, já me contou duas vezes sobre a viagem que fez, trabalhando de marujo, assim como acharia graça do meu esforço em aprender literatura - literature! Meu amor, não parta sem mim! E, nesse momento, como que adivinhando minhas aflições, você irrompe na sala, deixando a sua solidão: - Vamos jantar no quarto?

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