sábado, 23 de abril de 2011

ONÇA NEGRA

Incompreendida,
à nada se iguala,
do seu pelo, ardência escura
e imponente armadura,
o silêncio e a solidão
emanam, além pântano.

Vejam, a onça negra
caminha discretamente,
seus olhos, citrinos-topázios,
indicam a vitalidade do seu exílio

(Não há o que temer)

Enérgica, rege os meus passos
essa companheira ancestral,
formando um arquétipo guerreiro
constelado na floresta do meu coração.

Logo pela manhã, ao avistar
o dia rompido pelo machado da aurora,
ela salta do meu peito para beber
no arroio dos seus desejos.

Ninguém vê a acossada criatura,
invisível aos olhos da cobiça,
a rainha dos mistérios
adentra na nossa rotina.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Celebração

A cada ano, ressurjo.
A generosidade é, 
ao mesmo tempo,
uma espada,
que age sozinha,
e um anjo vigilante.

Serena, deito ao seu lado,
Olho para o dourado dossel das árvores.
É outono e festejo o meu primeiro dia de liberdade:
fiz as pazes com a loucura.
(Em segredo, agarrei-me à superfície
e como a lua não fui afetada,
estava lúcida e resignada).

A cada ano, ressurjo.
A fragilidade é
uma lamparina,
que ilumina e aquece
as noites de insônia.

Decidida, encaro você,
sob os nossos corpos,
a relva refrigera novas intenções.
É outono e festejo o meu primeiro dia de liberdade:
domei minha alma quando morei ao pé do vulcão.
(Em segredo, salvei os estilhaços da esperança
e como uma cadela que carrega seus filhotes,
na boca, experimentei o instinto de amar).

A cada ano, ressurjo -
relógio de ouro
em tempo indecifrável.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

CONFIANÇA

Hans Christian Andersen: uma alma atenta às necessidades humanas
Sinto que nada está fora do lugar, em minha vida. Pela primeira vez, ela se aquietou e é com satisfação que começo, mais do que nunca, a ser mais para mim mesma. Ontem, enquanto arrumava o acervo de livros para as crianças, no Sesc, encostei-me na parede e li avidamente, um conto do Andersen, a Polegarzinha. Essa história é um clássico dos contos de fadas, a qual narra as aventuras de uma mocinha muito bela, que tem o tamanho de um polegar. Além de seu nascimento ter sido tardio, a pequenina heroína foi sequestrada por uma 'sapa', que queria que ela se casasse com o seu filho, que nem sequer falava e apenas coachava. Depois disso, Polegarzinha conseguiu fugir e quase morrendo encontrou um lugar para ficar, a casa de uma ratinha muito acolhedora, mas que também queria que a pequenina menina se casasse com um pretendente indesejado, uma topeira.
Ao ler essa história - aliás, todos os contos do Andersen - uma angústia inevitável se apoderou de mim. A garotinha era refém dos desejos alheios e pouco havia espaço para ela viver o que desejava. Em determinado momento, ela se deparou com uma andorinha adoentada, no túnel, que a topeira cavou para ligar sua casa a da ratinha, onde estava abrigada. Polegarzinha, pela primeira vez, ao ver o pássaro, sentiu-se feliz, enquanto a ratinha e o sr. topeira criticavam o animal desfalecido: "ele só sabe voar e cantar... e deve achar isso bonito".
Enfim. No final da história, ela consegue fugir com a andorinha da casa da ratinha e não se casa com o sr. topeira. Ela chega até mesmo a encontrar um lugar para morar agradável, assim como desposa um jovem que lhe agrada.
Esse conto de fada me fez refletir sobre uma questão que penso ser essencial para nós, seres humanos. Pois,  não basta vivermos de qualquer maneira, é necessário estarmos de acordo com aquilo que pensamos ser a nossa felicidade - e que arrisco a mencioná-la como o encontro com o nosso Self, isto é, o nosso verdadeiro eu. Na psicologia analítica, existe todo um arcabouço teórico para que o paciente possa se conhecer melhor e trilhar um caminho de individuação da sua personalidade, para que o leve à construção de uma vida significativa, plena de sentidos. Dessa maneira, não bastava para a Polegarzinha casar-se com um sapo, ou uma topeira. Nem mesmo morar debaixo da terra. Ela precisava voar, sentir os raios de sol reverberando em sua alma até encontrar um pretendente que a fizesse sentir que valia a pena viver.
Eu não sei, mas ultimamente, estou sendo uma boa companhia para mim mesma. Pois com atitudes tão simples - que se as pessoas soubessem poderiam até me chamar de idiota - acabo chegando onde quero. É que tenho descoberto, com o meu coração, que não preciso ser nada para ninguém, ou para um coletivo. Que as coisas que devo valorizar eu sei onde buscar: aqui dentro, onde pulsa a certeza do meu ser e que portanto, não importam os tropeços, trilharei caminhos que me propiciarão a felicidade.

sábado, 9 de abril de 2011

O amor descobrirá o caminho, autor anônimo

Sobre as montanhas
E sob as vagas,
Sob as nascentes
E sob as covas;
Sob o mar mais fundo
Que Netuno obedece,
Sobre a rocha mais abrupta,
O amor descobrirá o caminho.

Quando não existe lugar
Para o vaga-lume ficar,
Onde não existe espaço
Para se acolher a mosca;
Onde o maruim não se arrisca
Com medo de pousar
Se o amor chegar, entrará
E descobrirá o caminho.

Pode considerá-lo
Criança por sua força;
Ou pode julgá-lo
Covarde por sua fuga:
Mas se ela, a quem o amor honra,
Se esconder do dia,
Com mil guardas no encalço,
O amor descobrirá o caminho.

Uns pensam em esquecê-lo
Mantendo-o confinado;
Outros o imaginam,
Coitado!, cego;
Mas se jamais o emparedar,
Por mais que se esforce,
O amor cego, como o chamam,
Descobrirá o caminho.

Pode treinar a águia
Para pousar no braço;
Ou pode enganar
A fênix do oriente;
A leoa, pode induzi-la
A desistir da presa;
Mas jamais deterá um amante:
Ele descobrirá o caminho.

Se a terra dele se apartar,
Ele a percorrerá a galope;
Se o mar se lançar contra ele,
Ele nadará até a praia;
Se o amor se transformar em andorinha
E cruzar o ar a esmo,
O amor emprestará asas para a seguir.
E descobrirá o caminho.

Não há empenho
Para lhe obstar o intento;
Não há maquinações
De sua trama a impedir;
Mas, se um dia receber a mensagem
De que o Verdadeiro Amor fica,
Quando a Morte vier a seu encontro,
O amor descobrirá o caminho!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sidarta, Hermann Hesse

- Sidarta - disse então - ficamos velhos. É pouco provável que nos tornemos a ver sob esta forma de existência. Vejo, meu querido, que encontraste a paz. Confesso que eu não consegui localizá-la. Dize-me mais uma palavra, ó Venerado. Dá-me algo que eu possa levar comigo, alguma coisa que me seja possível entender e assimilar durante a minha jornada. Olha, Sidarta, esse meu caminho é às vezes bastante laborioso e sombrio.
Sidarta permaneceu calado. Limitou-se a fitar o outro com aquele seu sorriso plácido. Govinda cravou os olhos no rosto do amigo. No seu olhar, liam-se angústia, saudade, sofrimento, tanto como contínua busca, contínuo desencontro.
Sidarta percebeu-o e sorriu:
- Acerca-te de mim! - soprou ao ouvido de Govinda. - Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!
Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição e por algum pressentimento, obedeceu o desejo de Sidarta. Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular. Enquanto os seus pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhas, proferidas por Sidarta; enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente, por eliminar o tempo e por representar a unidade de Nirvana e Sansara; enquanto no seu íntimo certo desdém pelas opiniões do amigo se debatiam com irrestrita ternura e reverência, deu-se com ele o seguinte fenômeno:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presentes simultaneamente, rostos esses que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. Via a cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar. Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo da vítima, e ao mesmo tempo via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado. Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor. Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios. Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes, touros, aves. Via divindades, Crisna, Agni... Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-lo, a odiá-lo, a destruí-lo, a pari-lo de novo. Cada qual expressava o desejo de morrer, era apaixonada e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspecto sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração. E todos esses rostos repousam, flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se. Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma camada fininha, irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água. Pois, essa máscara morria, e essa máscara era o rosto risonho de Sidarta, que ele Govinda, nesse momento, tocava com os lábios. E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da unidade acima do fluxo das aparências, o soriso da simultaneidade muito além do sem-número de nascimentos e mortes, o sorriso de Sidarta, era idêntico àquele sorriso calmo, delicado, indevassável, talvez bondoso, talvez irônico, de Gautama, o Buda, tal como ele próprio observara centenas de vezes com profundo respeito. Era assim - Govinda o sabia - que sorriam os seres perfeitos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

RIVAL, Sylvia Plath

Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua é sincera,

E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa de correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.

sábado, 2 de abril de 2011

NECESSIDADES

Eu preciso de liberdade. De menos vergonha. De mais confiança. De amor - de quem? De mim mesma em primeiro lugar, e em segundo; de quem se sentir à vontade. Preciso da honestidade. Do silêncio e do esquecimento. De mais originalidade e menos comparações. Preciso meditar e ouvir as batidas do meu coração. Preciso dos gatos, ao meu redor, e das palavras, que são ópio para minha alma, pois preciso ler para despertar - esta noite, ouvi o Henri Rollins ler um trecho do Henri Miller e me senti melhor. Pronta pra mais uma. Preciso de ousadia e de doar-me para o mundo. Das crianças e do dia clarear depois de enfrentar noites insônes - ah, e um bom café preto! Preciso da minha família. De companhias que me deixem ser a alheia sempre. De dinheiro e de riscos - arriscar-me, diariamente, a ser os desejos da minha alma. Preciso. Preciso. Mesmo.