segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Próximo passo

Superar o crepúsculo
na curva da dúvida.
Solidão em dosagem
certa é o antídoto
para vigarice.

O cavalo azul,
de pata cindida,
conspira sua fuga.
Na senda de seus cascos
pequeninos corações
de ouro reluzem
a coragem do intento:

eclipsada derramo
meus braços nas estrelas
mais próximas da gente
- no caminho
senti em meu pescoço
o frescor das flechas voadoras.

Alcancei minha sombra
e fui fertilizada.

Houve transformação.

domingo, 18 de dezembro de 2011

ADEUS 2011

Mais um ano passou. 2011. Acho uma tremenda bobagem fazer um retrospecto do que aconteceu, assim como planejar metas para o ano que vem - apesar de já ter feito isso inúmeras vezes anteriormente. Mas esses métodos caíram em desuso, pois, simplesmente, não tenho mais saco. A filosofia do "não tenho mais saco", apesar de parecer rude, é sábia (ao menos, espero que seja), porque o que está por trás dela é a confiança de que nada do que viverei futuramente será tão diferente do que estou vivendo agora, daí a falta da necessidade de retrospectos e de planejamentos. Estou em uma boa fase da minha vida e ponto.

"Acordei tentando lembrar dos meus sonhos. Eram 10h00 da manhã. A minha gata já estava sobre o meu travesseiro me chamando para tomarmos café da manhã. Ela, como sempre, foi na minha frente, atravessou o corredor, chegando à cozinha, onde fica seus potes de água e de ração; eu, ainda sonolenta, depois de ter colocado a água na chaleira para esquentar, preparei o pão com queijo, para logo pegar o jornal que fica do lado de fora, na entrada do apartamento (...)

DIÁLOGO - Os escritores modernos

Os escritores modernos (James Joyce, Virginia Woolf, Marcel Proust) apresentavam os dilemas de suas personagens a partir de uma perspectiva, na qual o cotidiano com suas miudezas era hipervalorizado. Os grandes golpes do destino e os pontos cruciais externos acerca do tema não eram encarados como decisivos. A confiança era de que em qualquer fragmento escolhido ao acaso, em qualquer instante, no decurso da vida, estava contemplada a substância toda do destino das personagens. Assim, a demanda de ir ao açougue comprar miúdos em Dublin, em Ulysses de James Joyce, fazia parte do heroísmo do homem comum, que buscava levar sua vida no mundo irônico e prosaico dos tempos modernos. Costurar a meia para o filho do faroleiro, em Passeio ao farol de Virginia Woolf, era o momento em que todo o mistério de Mrs. Ramsay e sua beleza exuberante se condensavam, convidando o leitor a interpretar sua vida. Relembrar da infância, permeada por personalidades tão fascinantes, a partir do sabor de uma madeleine molhada no chá, em No Caminho de Swann de Marcel Proust, também fazia parte do recorte moderno que enfatizava o corriqueiro.

(...) As roupas íntimas no varal, o chá de hibisco com maçã, a esperança de que nos acertemos. Deixei um bilhete sobre a mesa, desejando um bom final de semana, na observação: eu te amo."

Falta uma porção de coisas para me acertar ainda. Mas, ao olhar para o meu cotidiano, sinto que por enquanto o mais importante é não estabelecer critérios. O foco é viver o meu cotidiano devagarinho, construindo os sentidos da minha vida, assim como as personagens dos romances modernos, que a cada passagem dos romances mencionados acima, mostraram que a riqueza está nos momentos banais que podem inclusive ganhar uma função mítica.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Feira de Antiguidades

Branco era a cor que, naquele momento, me hipnotizava. Ela estava nas porcelanas do banheiro, nas rendas das peças íntimas penduradas atrás da porta, no meu glóbulo ocular e nos pelos da minha gata que, no corredor, vigiava o momento em que me preparava para sair de casa.

O branco e o silêncio daquele dia me levaram a uma fugidia sensação de liberdade, o que me fez lembrar o quanto estava cansada há um bom tempo.Era domingo e não sabia ao certo para onde ir, mas me sentia em paz.

O telefone tocou, do outro lado da linha, um amigo lembrou-me de uma feira de antiguidades, na qual poderíamos expor nossos sentimentos e lembranças que não valiam mais a pena carregarmos. Achei interessante. Mas se vendesse o meu passado o que seria de mim no futuro? O meu presente, infelizmente, era estéril, havia me acostumado a viver uma dieta afetiva: um pouco de sentimento para você, outro para ele e esse tantico para ela.

Sim, eu sabia que precisava mudar, mas para quem?

Fui à feira de antiguidades, expus uma lembrança que me era cara, na verdade, não queria me desfazer dela, mas sabia que havia chegado a hora: o dia que te conheci. Ao lado dela, dois sentimentos tão encrustados um ao outro que mal conseguia distingui-los, o amor e o rancor.

Tentei não criar expectativas, afinal, estava em paz: o branco e o silêncio da manhã me abasteceram o suficiente de candura. Mas quem escolheria o rancor? Um rapaz aproximou-se de mim, timidamente e, ao segurar o "rancor" nas mãos, disse que já tinha tido um desse antes, que era como chumbo preso ao peito, ou como lava de vulcão escorregando pela garganta. Acha que alguém o comprará?, perguntou-me. Mas ao invés de responder-lhe, fiz outra pergunta: "Como se desfez do seu?". Ele sorriu enigmaticamente e tirou do bolso um punhado de notas do bolso, a fim de comprar meu sentimento. "Não quer o amor?". Respondeu-me que não, decidido levou o rancor embora para longe de mim.

Qual o seu nome?, perguntei-lhe. O rapaz já distante respondeu gritando: "Tempo!".
Ainda com o "dia que te conheci" e o "amor" expostos para serem vendidos ou trocados, pensei em voltar para casa. Mas uma garota se aproximou de mim, ela estava usando um vestido branco de tule. "O dia que te conheci", você está vendendo? "Mas posso trocar por algo", respondi. "Eu também o conheci como você; mas nunca o compreendi. Você o compreendeu? Quer trocar pelo meu "o dia que te conheci"? Achei prudente não aceitar, era o apego do apego, estava decidida a dar um adeus profundo àquilo tudo. "Não".
"Não tem problema", respondeu ela, "Compro de você do mesmo jeito, queria apenas conhecer você melhor. Aliás, sempre quis sentir como você sente...". Ao me pagar, a garota de vestido de tule branco partiu satisfeita.

Ao olhar para o "amor", decidi voltar para casa. Não havia mais o que expor e me desfazer. Poderia recomeçar, estava em paz o suficiente para aguardar a minha aurora.

domingo, 27 de novembro de 2011

Retornando...

Hora de voltar a escrever. Em alguns momentos, ficava apreensiva por não estar escrevendo absolutamente nada. Nem a descrição de um suspiro, nem um relato da esperança que voltou a crescer dentro de mim como uma grama verdejante. Sabia que algo estava faltando, mas a rotina, nesses últimos tempos, me dragou de tal forma que não pude me dedicar à tessitura da poética. Apenas avaliei e senti cambaleante os imperativos da vida que foram me empurrando até a outra margem do rio: sim, atravessei o meu passado, para, agora, no presente, descansar sob o dossel dos desejos, a fim de me revigorar para a próxima colheita.
Mesmo não escrevendo como gostaria, súbitos pensamentos e imagens invadiram a minha mente: ao imaginar de forma espontânea um abalo sísmico em uma ilha, enquanto caminhava para pegar o metro, aprendi um pouco mais sobre mim mesma, ou seja, descobri - fazendo as pazes com a minha própria alma - que me habitar é como morar em uma ilha intocável, de flora e fauna exóticas e exuberantes, mas também regida por cataclismos aleatórios. Seria o fator criatividade? Talvez. Gosto muito de uma frase que estava escrita em plena Av. Sumaré "Para nascer uma estrela é necessário o caos" Nietzsche.

Nesses últimos tempos, estudei, trabalhei e me expus demais. Toda minha energia estava voltada para fora e como uma amante que se entrega de forma, obscenamente, omissa e desejante ao seu homem, me doei infatigavelmente ao mundo que por sua vez foi generoso comigo.
Agora, é hora de me recolher um pouco, costurar as impressões às emoções e aos sentimentos desencadeados pelas experiências vividas, separar o que deve ficar e perseverar daquilo que deve ser expelido e combatido. A busca é sempre de equilíbrio. Nem tão ao céu, nem tão à terra.

Para mim, voltar a escrever sempre é bom, mesmo não sabendo ao certo o que vou encontrar.  A melhor forma para expressar o processo da escrita para mim é fazer uma analogia com a descida em alta profundidade de um mergulhador a um novo território. Lá, ele encontra seres unicelulares que nos remetem ao início do processo evolutivo da vida; aqui, encontro emoções, sentimentos, pensamentos que tentam dar conta de expressarem quem sou.

É o pensamento do pensamento. A emoção da emoção. O sentimento do sentimento. É ver vocês sem o "ego", exibindo a beleza e miséria de suas escolhas, assim como vejo refletido em todas as suas ações a qualidade de seus olhares para vida: há pessoas corajosas, que mesmo não sabendo amar buscam estar à altura da vida e há pessoas covardes que jamais saíram de si mesmas para aventurar-se no outro com medo de se perder. Mas para encontrar algo, é necessário perder-se por um período.

Assim, ao escrever sobre mim, o processo de me encontrar nos caminhos, às vezes, tão incertos da  vida, se torna um artefato que me permite vislumbrar a fascínio que é viver, salvando-me como faz o cilindro de oxigênio do mergulhador.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

LINGUAGEM

A vírgula, que separa o sujeito do predicado, é uma pausa para respirar e reorganizar o caminho. Seu intento é criar suspense para transgressão. Meu sujeito é errante, ele não se complementa de forma previsível, o seu maior sabor é o dissabor. Aliás, o meu sujeito é sujeita. Novamente, recapitulando e recriando-se: sou a Sujeita  determinada que prefere usar verbos transitivos diretos e ser simples. Dificilmente concordarei com reducionismos de qualquer grau e se me julgam por ser verborrágica, digo-lhes: papibaquígrafos!

domingo, 18 de setembro de 2011

AMÁLGAMA

É importante a ordem dos fatos? Não.Vou direto ao essencial. A foto, que tenho em minhas mãos, evidencia a amálgama dos nossos sentimentos e de nossas histórias pessoais, que se cruzaram em determinado momento. Ou melhor, em determinados momentos. Determinados, pois, enquanto vivíamos esses momentos, toda a experiência de sermos nós, parecia ter um propósito. Não haviam dúvidas. Éramos cartesianos, nas pequenas promessas que fazíamos um ao outro, sem medo do futuro. Naquele período difícil, tanto para mim quanto para você, fomos capazes de criar um espaço para nos perscrutarmos com respeito e admiração: a minha fraqueza (havia perdido minha irmã que falecera da mesma doença que matara a minha mãe), em seu coração, era como uma joia dentro de um cofre, perdido no fundo do mar; enquanto, os seus dissabores (você estava arrasado por ter perdido o emprego) eram o ponto de partida para eu lhe acalentar, nos meus braços, como se eles também fossem pequenas joias a serem polidas todos os dias, para restabelecer uma beleza inata. Mas (sempre há um mas), tivemos que nos separar. A sua vida urgia para continuar a ser o que anos cultivava, em segredo, pois ao mesmo tempo que estava triste por não ter mais o  emprego, estava eufórico para iniciar outra fase em sua vida.  Sabia, de forma aflita, que o seu próximo passo seria libertador, inclusive, de mim. Você, resoluto, sem mais desculpas, se trancafiaria, no seu quarto, e se dedicaria ao seu sonho: escrever romances. Mas isso nos impede de estarmos juntos? Foi o que disse, quando, naquela manhã fria, no apto. de seu amigo, você fingiu não me escutar. Apressado, vestindo o casaco ao mesmo tempo que lia as manchetes dos jornais, me enviava mensagens subliminares para eu partir. Haveria outra pessoa em sua vida? No período, que estávamos juntos, nada levava a esse questionamento. Repeti novamente: vamos continuar juntos? Silêncio e prudência. De fato, achei melhor não me responder, estava cansada de lutar por nós e você sabia disso. Ao menos, a hora do café da manhã, na padaria, ainda seria um refúgio para nós. Naquele momento, a minha defesa, para suportar a nossa separação, foi acreditar que tudo voltaria ao lugar quando você se tornasse um escritor reconhecido. Mas, agora, passados seis meses, com essa foto em minhas mãos, sem saber do seu paradeiro, pouco sei quem é quem. Éramos, simplesmente isso: éramos. Eu topei viver aquele ano como sua querida companheira. Você me deu o que tinha. Absorvi seus hábitos e indiossincrasias de forma discreta: seu café sem açúcar; as vagens, borbulhando na panela, às quarta-feiras, após a feira; sua teoria incompleta sobre a existência de deus, que me tirava gargalhadas, pois quando começa a discorrê-la o enxergava como um garoto ingênuo e ousado. É isso. Absorvi tudo e, agora, com essa foto em minhas mãos, não sei como recomeçar.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

VERMELHO

Imagem, ação:
tropecei nas fitas de cetim 
que estancavam
o sangue do coração.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

DESPEDIDAS

No momento da despedida, um breve 'te cuida!'. Aliás, sempre foi assim e sempre será - com todos nós, basta estarmos unidos uma vez, para logo nos separarmos. Isso me parece injusto: na fricção do ir e vir a solidão resplandece como uma nesga de luz que se esgueira da porta de um templo.Até mais? Sim, até mais. Mais é soma de algo com o seu devir. Então voltaremos a nos ver? É o que todos desejamos. Nossos pais nos esperam voltar para casa, quando os deixamos sozinhos com suas solidões esquecidas, encobertas com a poeira dos seus carinhos. Nessa perspectiva, eles me parecem santos banhados em graça: doaram a si mesmos para nós, a fim de que vaguemos como caravelas em  mares - ora cheios de tormenta, ora cristalinos a ponto de conseguirmos ver nossos reflexos.
Não gosto de despedidas, mas aprendi a suportar aquilo que me escapa: a dança do ir e vir da Vida. Os barqueiros milenares da Índia compreenderam essa intermitência exaustiva, contemplando os rios. Mas, na cidade onde eu moro, o rio é distante e sujo. Não consigo aprender nada com ele. Dizer que os momentos compartilhados são especiais é fácil quando os observamos em cima do muro da contemplação. Mas, infelizmente, na precariedade de minha condição humana, só posso oferecer um 'Até mais!' Para mais e mais...

terça-feira, 16 de agosto de 2011

TALISMÃ I

Cavalo prateado
subindo a encosta
da montanha
dos meus sonhos.

Diria apenas:
esperança reina -
miosótis se espalham
na alameda de nossa cumplicidade.

Ao meu redor,
as crianças
contrabandeiam
angústias inacessíveis.
Dou-lhes borboletas alvas,
para guardarem
em pequenas caixas
de veludo grená.

(Paraíso é fazer do outro o seu labirinto predileto).


Haverá sempre salvação,
enquanto os corações
se chocarem  à deriva do amor.


Vamos, meus pequenos!,
há jardins fabulosos para cuidarmos:
aqui, seremos mudos como os sábios,
cristalinos como as larvas, astutos como os cervos
e telepáticos como os golfinhos.

Não teremos mais medo
de voltarmos à nossa terra natal.

domingo, 7 de agosto de 2011

ODE ÀS FORMIGAS!

Esses dias fiquei refletindo sobre as formigas. Isso mesmo: as formigas, aquele inseto que é o gênero animal de maior sucesso na história terrestre, constituindo de 15% a 20% de toda a biomassa animal terrestre. Era tarde e já estava me preparando para rezar, quando vi dentro dos vasos de flor algumas formigas mortas. Elas tinham se afogado e estavam boiando na pequena superfície d´água e então me veio à mente a seguinte pergunta: - O que se passa no coração de uma formiga? Sorri, primeiramente, pois imaginei um coração tão pequenino que seria impossível vê-lo a olho nu; depois, sorri novamente, porque, no fundo, estava me referindo a um coração não somente como um órgão físico de um determinado corpo vivo, mas como símbolo de toda experiência anímica. Dei mais risadas. Na verdade, não sei se a formiga tem um coração e me faltou motivação para fazer uma pesquisa a respeito do corpo desse inseto, mas não importa, pois o que é verdadeiramente relevante nesses devaneios é a imagem de um pequenino coração com toda sua determinação pulsante. Pois é. Fiquei, admiravelmente, chocada com o fato de arriscarem suas vidinhas, desbravando locais perigosos, como os vasos de flores cheios d´água, que ficam em apartamentos de meninas solitárias e sonhadoras, em busca de alimentos. Será que não percebem que podem morrer nesse tipo de empreitada? Acho que não. Nos seus coraçõezinhos, só cabem determinação e servidão, pois a formiga rainha espera o ganhos conquistados pelas operárias para a manutenção do formigueiro. Senti pena e admiração por aquelas formigas mortas e por um tempo suspendi os meus afazeres, como rezar e voltar a estudar, para compreender melhor a minha estupefação com relação àqueles insetos. Nossa! No fundo, eu invejava as formigas, pois sem titubear suas vidas tinham um sentido tão claro e pulsante que nada, ao longo da História, desde tempos remotos, pré-históricos, iria impedi-las de continuarem perseverantes em existir. Haveria formigas depressivas? Rebeldes contra a eussocialidade (O termo eussocial é conferido aos animais que apresentam as sociedades mais complexas)? Tristes por não serem correspondidas no amor? Preocupadas em perder o emprego? Sim, eu invejava as formigas. Suas mortes pareciam ter mais sentido quando comparada a dos homens, seres miseráveis, que muitas vezes passam uma existência inteira, sem conseguir ouvirem as vozes do seus grandes corações. Ah, vivam as formigas!

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

JARDIM: uma metáfora da alma

"O jardim é um vínculo concreto com a vida e a morte. Seria mesmo possível dizer que existe uma religião dos jardins, pois eles nos ensinam profundas lições espirituais e psicológicas. Qualquer coisa que possa acontecer a um jardim pode acontecer à alma e à psique  — excesso de água, falta de água, pragas, calor,tempestades, enchentes, invasões, milagres, ressecamento,reverdecimento, bênçãos, cura.
Durante a existência do jardim, a mulher escreve um diário, registrando os sinais de doação de vida e de retirada de vida. Cada registro ajuda a formar uma sopa psíquica. No jardim, adquirimos prática para deixar que pensamentos, idéias, preferências, desejos e até mesmo amores vivam e morram. Plantamos,arrancamos,
enterramos. Secamos sementes, fazemos a semeadura, protegemos as plantinhas.
O jardim é uma prática de meditação, a de dizer a hora de alguma coisa morrer. No jardim, podemos ver chegar a hora de desfrutar e a hora da regressão. No jardim, estamos nos movendo de acordo com a inspiração e a expiração da grande natureza selvagem, não contra ela".

Mulheres que correm com os lobos, Clarice Pinkolas Estés. 

terça-feira, 26 de julho de 2011

DIA ESTRANHO

Dia estranho.
Logo cedo, ao me olhar no espelho,
vi um templo com amplos vitrais.
O vento, da manhã fria,
atravessava a nave principal
varrendo toda poeira acumulada:

não me lembro mais de você, propositalmente.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

VIVER

A cidade está fria.

As pessoas são gentis
umas com as outras.
Tudo está funcionando:
semáforos, botões pregados, 
desejos sublimados,
tráfego tranquilo.
(Por que Pandora abriu a caixa?)

A saliva da brisa
sobre meu peito frio
precipita gotas de orvalho,
desenhando um dragão
com a boca aberta...

Não sei se sou
mais inocente que você.

Milagre
é estarmos vivos
há tanto tempo,
compenetrados
nas nossas invenções

acreditamos, inclusive,
que há sentido para tudo:

Meu querido, por que partiu tão cedo?

Com urgência
sou solicitada
e decido o dia todo,
mas quando tudo silencia, noto:

sobre o travesseiro de grama,
onde descanso todas as noites,
esqueci visões salutares:
o mar encrespado
todo prateado,
a flor presa aos meus cabelos,
as crianças sonolentas sobre o meu colo.

Vale a pena estar de passagem.

terça-feira, 19 de julho de 2011

ROTINA

Para a minha gata
sou um mistério ambulante
e um cacto extravagante

(Não sei mais para onde crescer).

Já invadi o hall do apartamento
e os vizinhos começam a me culpar
por instituir o silêncio como
um prêmio quitado
por todos os pecados.

Poderia chamá-los para um chá
e uma conversa franca,
mas, ao som do tilintar das colheres de prata sobre os pires,
poderia me tornar uma medusa  flutuante -
o que não seria nada bom
para minha reputação
de filisteia inebriante.

A minha gata já se acostumou
com a maneira como amo: à conta-gotas
e atenta e distante
observa a minha solidão
que de tão pulsante
alimenta meus pensamentos
frustrantes.

Mas é um grande azar
descobrir que nem todos
 me compreendem
em par em par
como faz a bichana
ao me perscrutar.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Poesia: frustração e gozo juntos. Por que ainda escrevo?

INSIGHT

Um colar de segredos
caído na calçada -
diria a ele: seja bem-vindo?

Quebrar o jejum
sem cortar as patas do leão
pode ser fatal.

Os lépidos olhares dos transeuntes
me envelhecem algumas décadas
até me transformarem em ser invisível.
(Sou apenas uma presença como uma lembrança).

Meus sentimentos, fogos de artifícios oníricos, irrompem no céu
para conclamar a nudez da alma: vermelho, laranja, azul.

Voltaremos a nos encontrar.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

RETIDÃO

A nuvem tempestiva: "confusa. dócil. intrépida. ingênua. sonhadora.destrutiva. alucinada...               graciosa...".


É domingo. E toda tentativa de aproximação é bem-vinda.O silêncio dilui as dúvidas, formando balões prateados no canto da sala. Nesse momento, ninguém ousaria transmutar seus pequeninos males em azeviche estonteante. Dentro do meu corpo, enquanto estou muda com a cabeça inclinada para você, centenas de olhos estão abertos. Minha mente, um semáforo em diligente sinal amarelo, abre as cartas de baralho sobre a mesa para um cavalo negro, profundo como a dor de Cristo, saltar à nossa frente.

Nesta casa, ninguém comerá pratos frios e crus, apesar das tolices terem saqueado a aspereza da minha oferenda - um doce perdão.

domingo, 19 de junho de 2011

FESTA

O crepúsculo e sua infinita flecha dourada
rubis gotejam nas taças sobre a mesa.

De toda torta, um desejo:
a cereja explosiva do sim.

Enquanto isso, petisco seus olhares.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

We can keep going...

sexta-feira, 10 de junho de 2011

AUTOCURA

Com um canivete abro este instante:
uma difícil cirurgia. Ninguém poderia
fazer isso a não ser eu mesma.
Alguém me chama no corredor,
uma luz vermelha acende,
ossos revirados inocentam o improvável engano
O tempo urge e já não posso recuar:
os tendões dos sonhos foram rompidos.
Alguém quer um chá de laranja?
Vacilo e perco por alguns instantes a visão
Me plasmo às lembranças, e ,sem força,
 não consigo mover as articulações.
Dou o primeiro guincho, e estou feliz por não me reconhecer.
As afáveis orquídeas sobre a mesa
inclinam-se até chegarem aos meus lábios
Em cada uma, há um pouco de compaixão,
Oh, queridas! Bem sei que são orelhas lívidas
nas quais posso sussurrar o meu segredo:
também me veem diminuta presa a este instante?

terça-feira, 7 de junho de 2011

PROTEÇÃO

the truth comes to me. the truth loves me.

Cansada, experimento a liberdade
como um veleiro que é dragado
pelo vórtice do redemoinho.
Nesse momento, sem querer,
me aproximo da verdade e,
humildemente, proscrita,
reajo à convocação doce
da voz premunitória:

"celebre, um sol nascerá no centro da sua mente".

quarta-feira, 1 de junho de 2011

RECADO DE GELADEIRA

"Desapegue-se de tudo enquanto estiver escrevendo. Tente começar de forma simples, escolhendo palavras simples para expressar o que há dentro de você. Começar nunca é fácil. Permita-se essa estanheza. Você está se desnudando. Está expondo sua vida, não como seu ego gostaria de vê-lo representado, mas como você é como ser humano. É por isso que escrever, para mim, é um ato religioso. Ele o deixa em carne viva e enternece seu coração para o mundo da simplicidade".

Natalie Goldberg, Escrevendo com a alma

segunda-feira, 30 de maio de 2011

QUADRO I (uma homenagem ao pintor Edward Hooper)

Uma mesa redonda no canto da sala, com cadeiras ao redor, seus assentos são estampados: lírios geométricos. A luz amarelada do plafon de cristal. O gato cochila na almofada que está sobre o sofá de veludo grená. A luz esbranquiçada do abajour incide sobre suas mãos: uma nova cicatriz. Está, distraído, sentado na poltrona. De onde estou, em pé, próxima ao rádio - finjo ouvir as notícias sobre o temporal de ontem, ao mesmo tempo em que folheio um revista feminina- vejo você adentrar na sua solidão. Já não é o rapaz promissor que trabalha na gráfica e recebe elogios pela sua agilidade e educação. Ilhou-se do cotidiano. Névoa e dúvidas. Partirá sem mim? Hoje, certamente, não. Está frio e em breve tomaremos o caldo de tomates com majericão que fiz. Acendo o cigarro e abaixo o volume do rádio. Não me nota e nem ouso lhe chamar atenção. Está bonito, olhando para o nada com alguma lembrança na mente. Atravesso a sala e sento no sofá para afagar o gato que ronrona. A sua solidão me exclui como o estampido de um trovão: não sei mais viver sem você. Seu livro está no chão: o autor se chama Melville. Capa de couro, título escrito em dourado, folhas amareladas e duas ou três marcações à lapis. Ao que tanto medita, meu amor? Gostaria mesmo que me convidasse para dançar, agora! Ou simplesmente ouvir um pouco sobre o seu dia, ou sobre a viagem que fez de navio, aos deozoito anos, e quem sabe, poderia até falar um pouco sobre esses livros que lê. Mas, no rádio, é apenas o noticiário. Nada de jazz. E, já me contou duas vezes sobre a viagem que fez, trabalhando de marujo, assim como acharia graça do meu esforço em aprender literatura - literature! Meu amor, não parta sem mim! E, nesse momento, como que adivinhando minhas aflições, você irrompe na sala, deixando a sua solidão: - Vamos jantar no quarto?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

FIM DE VERÃO

Faz um tempo que a timidez,
cadela magra entristecida,
deixou sobre a mesa um presente:
pérolas comestíveis para
aliviar a nossa solidão.

Em pleno domingo, 
presos aos lençóis, 
confundo os seus ombros 
com as asas da gaivota
que se prepara para o voo.
Ficamos apenas nós dois,
com o nosso futuro impenetrável.

Na hora do café da manhã,
em silêncio, maceramos segredos
na tentativa de nos unirmos -
um sonho doce.
As férias de verão
refletidas no côncavo
da colher me apresenta
o avesso do seu olhar:
gosta mais de mim
do que de fato pode supor(tar)

Mas não há o que temer.

domingo, 15 de maio de 2011

GIFTS

Hoje foi um dia bacana. Sem muita explicação, talvez por não ter nada para fazer, enquanto esperava o ônibus para ir ao trabalho, decidi que se um dia eu tiver uma filhinha, ela se chamará Lótus e gostaria mesmo que ela fosse como a G., a menina para quem eu li a manhã toda, na sessão de mediação de leitura - pois é, atualmente, sou animadora cultural e proponho práticas de leitura de texto literários para as crianças.
G. era esperta, bem humorada, apaixonada, questionadora, bela a sua maneira, com cabelos pretinhos e lisos e com um olhar curioso de quem sempre quer saber mais. Lemos bastante. Foi uma leitura atrás da outra: O Nascimento do Dragão, Cantigas de um Passarinho à toa, A Árvore Generosa, O Menino que mordeu Picasso, etc.
Ela perguntou para mim: - Por que você coloca seus bottons assim? A parte trazeira da zebra fica em frente da dianteira... Desse jeito ela vai se morder! Eu sorri e mostrei a ela um livro, que tinha algumas obras de arte de vanguarda e respondi: - Olhe este pintor, ele poderia ter desenhado de forma mais realista esta moça, mas não acho que seria tão divertido como ele optou em fazer... É uma nova maneira de compreender a realidade e que não deixa de ser harmônica, não acha? Olhe o contorno do perfil da foto e o da pintura, ainda são iguais! As cores combinam...
Ela sorriu e concordou comigo, foi até o seu avô e mostrou o livro para ele, perguntando se ele gostava desse tal Picasso. Enfim. Achei mesmo interessante ter acordado, com essa ideia na cabeça: que se um dia eu tiver uma filhinha, ela se chamará  Lótus e depois ter passado um tempo, com uma garotinha muito especial que pareceu dar forma ao que começara imaginar, quando estava indo para o trabalho.

sábado, 7 de maio de 2011

ABRUPTA

À noite, enquanto todos da casa dormem,
atravesso o estreito túnel dos impulsos
até chegar ao salão da gruta reencontrada.
Novamente, estou só e desconfortável.

O telefone toca e refletimos a nossa respiração
no espelho da dúvida e da covardia.

Passaram-se trinta e poucos anos,
a água no tanque das memórias
turvou, transformando o flerte da conquista
em enguia radioativa: a beleza do inabitável adeus.

Talvez, retornarei para servir o café da manhã.
E como todos os dias, partirei as maçãs ao meio,
arrumarei o vaso com incautas astromelias
e abrirei as cortinas para o sol inibir
os vestígios da noite passada - bem sei:
pesadelos, ejaculações, torrentes de esperança,
naufrágio de amor, tatuagem em punho.

(Obeliscos fraturados no ápice do perdão)

De onde quero chegar, verei o assombro de cada um -
teremos um outro dia, um outro tempo, para nos compreendermos.

sábado, 23 de abril de 2011

ONÇA NEGRA

Incompreendida,
à nada se iguala,
do seu pelo, ardência escura
e imponente armadura,
o silêncio e a solidão
emanam, além pântano.

Vejam, a onça negra
caminha discretamente,
seus olhos, citrinos-topázios,
indicam a vitalidade do seu exílio

(Não há o que temer)

Enérgica, rege os meus passos
essa companheira ancestral,
formando um arquétipo guerreiro
constelado na floresta do meu coração.

Logo pela manhã, ao avistar
o dia rompido pelo machado da aurora,
ela salta do meu peito para beber
no arroio dos seus desejos.

Ninguém vê a acossada criatura,
invisível aos olhos da cobiça,
a rainha dos mistérios
adentra na nossa rotina.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Celebração

A cada ano, ressurjo.
A generosidade é, 
ao mesmo tempo,
uma espada,
que age sozinha,
e um anjo vigilante.

Serena, deito ao seu lado,
Olho para o dourado dossel das árvores.
É outono e festejo o meu primeiro dia de liberdade:
fiz as pazes com a loucura.
(Em segredo, agarrei-me à superfície
e como a lua não fui afetada,
estava lúcida e resignada).

A cada ano, ressurjo.
A fragilidade é
uma lamparina,
que ilumina e aquece
as noites de insônia.

Decidida, encaro você,
sob os nossos corpos,
a relva refrigera novas intenções.
É outono e festejo o meu primeiro dia de liberdade:
domei minha alma quando morei ao pé do vulcão.
(Em segredo, salvei os estilhaços da esperança
e como uma cadela que carrega seus filhotes,
na boca, experimentei o instinto de amar).

A cada ano, ressurjo -
relógio de ouro
em tempo indecifrável.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

CONFIANÇA

Hans Christian Andersen: uma alma atenta às necessidades humanas
Sinto que nada está fora do lugar, em minha vida. Pela primeira vez, ela se aquietou e é com satisfação que começo, mais do que nunca, a ser mais para mim mesma. Ontem, enquanto arrumava o acervo de livros para as crianças, no Sesc, encostei-me na parede e li avidamente, um conto do Andersen, a Polegarzinha. Essa história é um clássico dos contos de fadas, a qual narra as aventuras de uma mocinha muito bela, que tem o tamanho de um polegar. Além de seu nascimento ter sido tardio, a pequenina heroína foi sequestrada por uma 'sapa', que queria que ela se casasse com o seu filho, que nem sequer falava e apenas coachava. Depois disso, Polegarzinha conseguiu fugir e quase morrendo encontrou um lugar para ficar, a casa de uma ratinha muito acolhedora, mas que também queria que a pequenina menina se casasse com um pretendente indesejado, uma topeira.
Ao ler essa história - aliás, todos os contos do Andersen - uma angústia inevitável se apoderou de mim. A garotinha era refém dos desejos alheios e pouco havia espaço para ela viver o que desejava. Em determinado momento, ela se deparou com uma andorinha adoentada, no túnel, que a topeira cavou para ligar sua casa a da ratinha, onde estava abrigada. Polegarzinha, pela primeira vez, ao ver o pássaro, sentiu-se feliz, enquanto a ratinha e o sr. topeira criticavam o animal desfalecido: "ele só sabe voar e cantar... e deve achar isso bonito".
Enfim. No final da história, ela consegue fugir com a andorinha da casa da ratinha e não se casa com o sr. topeira. Ela chega até mesmo a encontrar um lugar para morar agradável, assim como desposa um jovem que lhe agrada.
Esse conto de fada me fez refletir sobre uma questão que penso ser essencial para nós, seres humanos. Pois,  não basta vivermos de qualquer maneira, é necessário estarmos de acordo com aquilo que pensamos ser a nossa felicidade - e que arrisco a mencioná-la como o encontro com o nosso Self, isto é, o nosso verdadeiro eu. Na psicologia analítica, existe todo um arcabouço teórico para que o paciente possa se conhecer melhor e trilhar um caminho de individuação da sua personalidade, para que o leve à construção de uma vida significativa, plena de sentidos. Dessa maneira, não bastava para a Polegarzinha casar-se com um sapo, ou uma topeira. Nem mesmo morar debaixo da terra. Ela precisava voar, sentir os raios de sol reverberando em sua alma até encontrar um pretendente que a fizesse sentir que valia a pena viver.
Eu não sei, mas ultimamente, estou sendo uma boa companhia para mim mesma. Pois com atitudes tão simples - que se as pessoas soubessem poderiam até me chamar de idiota - acabo chegando onde quero. É que tenho descoberto, com o meu coração, que não preciso ser nada para ninguém, ou para um coletivo. Que as coisas que devo valorizar eu sei onde buscar: aqui dentro, onde pulsa a certeza do meu ser e que portanto, não importam os tropeços, trilharei caminhos que me propiciarão a felicidade.

sábado, 9 de abril de 2011

O amor descobrirá o caminho, autor anônimo

Sobre as montanhas
E sob as vagas,
Sob as nascentes
E sob as covas;
Sob o mar mais fundo
Que Netuno obedece,
Sobre a rocha mais abrupta,
O amor descobrirá o caminho.

Quando não existe lugar
Para o vaga-lume ficar,
Onde não existe espaço
Para se acolher a mosca;
Onde o maruim não se arrisca
Com medo de pousar
Se o amor chegar, entrará
E descobrirá o caminho.

Pode considerá-lo
Criança por sua força;
Ou pode julgá-lo
Covarde por sua fuga:
Mas se ela, a quem o amor honra,
Se esconder do dia,
Com mil guardas no encalço,
O amor descobrirá o caminho.

Uns pensam em esquecê-lo
Mantendo-o confinado;
Outros o imaginam,
Coitado!, cego;
Mas se jamais o emparedar,
Por mais que se esforce,
O amor cego, como o chamam,
Descobrirá o caminho.

Pode treinar a águia
Para pousar no braço;
Ou pode enganar
A fênix do oriente;
A leoa, pode induzi-la
A desistir da presa;
Mas jamais deterá um amante:
Ele descobrirá o caminho.

Se a terra dele se apartar,
Ele a percorrerá a galope;
Se o mar se lançar contra ele,
Ele nadará até a praia;
Se o amor se transformar em andorinha
E cruzar o ar a esmo,
O amor emprestará asas para a seguir.
E descobrirá o caminho.

Não há empenho
Para lhe obstar o intento;
Não há maquinações
De sua trama a impedir;
Mas, se um dia receber a mensagem
De que o Verdadeiro Amor fica,
Quando a Morte vier a seu encontro,
O amor descobrirá o caminho!

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Sidarta, Hermann Hesse

- Sidarta - disse então - ficamos velhos. É pouco provável que nos tornemos a ver sob esta forma de existência. Vejo, meu querido, que encontraste a paz. Confesso que eu não consegui localizá-la. Dize-me mais uma palavra, ó Venerado. Dá-me algo que eu possa levar comigo, alguma coisa que me seja possível entender e assimilar durante a minha jornada. Olha, Sidarta, esse meu caminho é às vezes bastante laborioso e sombrio.
Sidarta permaneceu calado. Limitou-se a fitar o outro com aquele seu sorriso plácido. Govinda cravou os olhos no rosto do amigo. No seu olhar, liam-se angústia, saudade, sofrimento, tanto como contínua busca, contínuo desencontro.
Sidarta percebeu-o e sorriu:
- Acerca-te de mim! - soprou ao ouvido de Govinda. - Inclina-te mais! Mais ainda. Chega-te para bem perto de mim! E agora me dá um beijo na testa, ó Govinda!
Govinda pasmou-se, mas, atraído por sua grande afeição e por algum pressentimento, obedeceu o desejo de Sidarta. Achegando-se a ele, imprimiu-lhe os lábios na fronte. E nesse instante aconteceu-lhe qualquer coisa singular. Enquanto os seus pensamentos ainda se detinham nas palavras estranhas, proferidas por Sidarta; enquanto seu espírito se esforçava, relutante e improficuamente, por eliminar o tempo e por representar a unidade de Nirvana e Sansara; enquanto no seu íntimo certo desdém pelas opiniões do amigo se debatiam com irrestrita ternura e reverência, deu-se com ele o seguinte fenômeno:
Govinda já não enxergava o semblante de Sidarta, seu companheiro. Em vez dele via outros rostos, inúmeros, toda uma fila, uma torrente de rostos, centenas, milhares, que todos eles apareciam, sumiam e todavia davam a impressão de estar presentes simultaneamente, rostos esses que a cada instante se modificavam e renovavam e, contudo, eram sempre Sidarta. Via a cabeça de um peixe, uma carpa, com a boca semi-aberta em infinita dor, peixe agonizante, de olhos vidrados. Via o rostinho de uma criança recém-nascida, vermelho, enrugado, a ponto de chorar. Via a fisionomia de um assassino, no momento em que varava com a faca o corpo da vítima, e ao mesmo tempo via esse criminoso a ajoelhar-se, algemado, para que o algoz o decapitasse com um só golpe de terçado. Via os corpos desnudos de homens e mulheres, entrelaçados em posições e embates de desvairado amor. Via cadáveres prostrados, imóveis, gélidos, vazios. Via cabeças de animais, de javalis, crocodilos, elefantes, touros, aves. Via divindades, Crisna, Agni... Via todos esses vultos e rostos ligados entre si por milhares de relações, cada qual a acudir o outro, a amá-lo, a odiá-lo, a destruí-lo, a pari-lo de novo. Cada qual expressava o desejo de morrer, era apaixonada e dolorosa a profissão de efemeridade e, no entanto, não morria, apenas se modificava, renascia uma e outra vez, tomava aspecto sempre diversos, sem que o tempo se intercalasse entre uma e outra configuração. E todos esses rostos repousam, flutuavam, geravam-se mutuamente, esvaíam-se e confundiam-se. Mas por cima deles, sem exceção, estendia-se uma camada fininha, irreal e todavia existente, qual tênue chapa de vidro ou gelo, camada transparente, casca, molde, máscara de água. Pois, essa máscara morria, e essa máscara era o rosto risonho de Sidarta, que ele Govinda, nesse momento, tocava com os lábios. E Govinda percebeu que esse sorriso da máscara, o sorriso da unidade acima do fluxo das aparências, o soriso da simultaneidade muito além do sem-número de nascimentos e mortes, o sorriso de Sidarta, era idêntico àquele sorriso calmo, delicado, indevassável, talvez bondoso, talvez irônico, de Gautama, o Buda, tal como ele próprio observara centenas de vezes com profundo respeito. Era assim - Govinda o sabia - que sorriam os seres perfeitos.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

RIVAL, Sylvia Plath

Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua é sincera,

E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa de correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.

sábado, 2 de abril de 2011

NECESSIDADES

Eu preciso de liberdade. De menos vergonha. De mais confiança. De amor - de quem? De mim mesma em primeiro lugar, e em segundo; de quem se sentir à vontade. Preciso da honestidade. Do silêncio e do esquecimento. De mais originalidade e menos comparações. Preciso meditar e ouvir as batidas do meu coração. Preciso dos gatos, ao meu redor, e das palavras, que são ópio para minha alma, pois preciso ler para despertar - esta noite, ouvi o Henri Rollins ler um trecho do Henri Miller e me senti melhor. Pronta pra mais uma. Preciso de ousadia e de doar-me para o mundo. Das crianças e do dia clarear depois de enfrentar noites insônes - ah, e um bom café preto! Preciso da minha família. De companhias que me deixem ser a alheia sempre. De dinheiro e de riscos - arriscar-me, diariamente, a ser os desejos da minha alma. Preciso. Preciso. Mesmo.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Uma sonhadora. E daí?

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Pérola jogada aos porcos

Um doido na esquina.
E ele bebe algo forte,
vejo o seu rosto contorcer
toda vez que dá um trago.

A caneca que segura com as duas mãos
é pouco importante, mas é lúcida da dor
de quem nunca fez questão
de ser como querem que sejamos:
prolixos amantes de olhares neutros.

A caneca está envolta por uma fita vermelha.
O doido de tempos em tempos
fala uma palavra aqui, outra acolá.
Sua roupa está molhada.
De onde estou, não consigo ouvir nitidamente o que fala:
ilusões? o ouro do otário? faça o seu melhor?
E dentro de mim morre uma parte mesquinha e medrosa.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

DIETA PARA SER BONITA E ELEGANTE

Segunda-feira
Tudo passa. Esteja certíssima disso. Mas até lá: o cinza carmim, na janela do seu coração-mente.

Terça-feira
Impossibilidade foi o que disseram aqueles que amamdesdenham a presença de quem você mais gosta ser: a Sra. À Revelia. Então vire A Indomada.

Quarta-feira
Torne insuportável caber no tamanho do seu próprio desejo e finja seguir os conselhos que lhe dão. Por favor, seja discreta.

Quinta-feira
Não ajeite o seu espírito denso, no corpo, enquanto todos comem, soltam gargalhadas e planejam sérios compromissos. Isso lhe deixará com um ar impertigado e ao mesmo tempo doce. Dica: deixe a nuca à mostra.

Sexta-feira
Sinta uma vontade brutal de viajar e ali - qualquer ali de idioma estrangeiro - fique ao lado dele. Deseje uma nova profissão. Um novo corte de cabelo. Novos sapatos e uma bicicleta para passear com o rapaz à beira do rio.

Sábado
Espasmo II. Vire de costa, lentamente. Não olhe para trás. Siga em frente. Calcule a sua raiva. Limpe suas têmporas suadas e pule o buraco à sua frente. Olhe para a lua e tente sorrir enigmaticamente.

Domingo
Espasmo III. Eleja uma árvore. Admire a sua copa. Espere anoitecer e não uive. Aguarde que lhe visitarão com boas notícias e dicas para ser bela.

FOTO: Une femme est une femme de Jean-Luc Godard.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Mistério

Me disseram que sou misteriosa - e achei a observação pertinente. Não tinha o que responder. Encostei a cabeça, no travesseiro, e sorri. Imediatamente, lembrei-me de um episódio: mamãe, após o falecimento de uma pessoa muito amada por nós, estava caminhando, no corredor da casa, rezando o terço. Olhei seduzida e ela como que adivinhando a minha curiosidade respondeu, em murmúrios: "Todos os dias rezo um Mistério para alma dele.... Para a família dele ter o conforto merecido... Para sua irmã ter muita sabedoria e força... Para você... Para seu pai... Para suas outras irmãs... Para termos saúde e dinheiro....". Depois dessa lembrança, me deixei em paz e não quis mais saber de mim e nem dos outros. Não respondi ao comentário e apenas o abracei.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

CARTA PARA MEDÍOCRES

São Paulo, 07 de fevereiro de 2011.

Prezado(a) alma de tampinha de garrafa amassada e presa, no asfalto

Venho por meio desta, para lhe dizer: tem coisas que não descem e pronto. Ficam entaladas na garganta, compreende? Isso inclui seres humanos bem pequeninos que têm uma alma parecida com uma tampinha de garrafa amassada e presa, no asfalto. Bem, entenda como quiser. Mas há pessoas e situações que não descem e graças a Deus, pois isso só mostra o quanto o meu termômetro para a mediocridade está funcionando bem. Inclusive para a minha própria - confesso -, pois se eu reconheço, em você, minimamente, o que me agride e envergonha é porque de alguma forma compactuo com isso, certo? Você, meu caro (a), poderia ser eu e vice-versa, ok, a questão é que você caminha por uma via e eu por outra, nesse destino de Meu Deus, e desse modo eu serei o seu eterno simulacro e você o meu. Mas olhe a diferença: sinceramente, adoro caminhar pelas sendas que mesma bordei, nas noites insônes, para encontrar o que há de melhor em mim... Manja? Enfim...

Tenha um bom dia.
Não me leve a mal.
Cordialmente

Ariane M.

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

My pillow is the grass

Eu planto neste jardim todos os dias, ou ao menos tento. Retiro as ervas daninhas para que as flores possam vicejar. Gosto mesmo é da relva verdinha e assim, encostar o meu cabelo nela. Tem dias que fujo para cá - lugar onde revisito o meu passado, danço com o presente e atiro flechas no futuro. Meu coração é a clareira do jardim e à noite é desse lugar que se pode ver as estrelas mais brilhantes. Fico à espreita do mundo, ouço o coachar dos sapos, que se mistura com as minhas memórias de infância. Não, não sou mais aquela menina. Pestanejo, e com os olhos entreabertos drago o horizonte que preciso fundir-me. O cheiro das alfazemas me deixa chapada e sinto saudades do que estou prestes a viver, enquanto que nos sulcos da terra vermelha, enterro o meu medo de morrer. Aqui, repouso, medito silenciosa até me tornar um oráculo para mim mesma e é quando começo a perder o ritmo da respiração profunda é que percebo que fiquei dias/noites longe de vocês. Este é o meu jardim.

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Clarice

Eu não sei. Apenas saco, assim, de repente. Ficar alheia é a solução, mas para mim que sabe-se lá por que não adia uma interpelação, e portanto, resolvo ali mesmo, no face-a-face, fingir que não é comigo pode ser algo ultrajante. Pois sim. E então, quando, no meio da madrugada, liguei para ele a fim de desabafar e ouvi ao término da minha fala uma sequência sonolenta de sim's, compreendo e amanhã tudo será diferente, resolvi chutar o pau da barraca da vida e mandei de forma sadia todo mundo ir pra puta que pariu! Pois bem. Resolvi, naquele momento, que a raiva não iria mais me corroer e dividi, democraticamente, com todos aqueles que estavam pisando no meu calo, desde manhã, que a porcaria da gente ser o que é e o mundo ser do jeito que é não era minha responsabilidade. Infantilidade? Não. Me acusar por não ser madura é a saída para quem já está se esquivando da sua parcela de responsabilidade dos seus atos. Enfim, magoei mesmo aqueles que haviam me magoado, primeiro, sem pestanejar. Acontece que, há duas semanas atrás, havia solicitado pela internet um conjunto de panelas de inox DAQUELA marca famosa. É. Aquela que todas as minhas vizinhas de andar possuíam, mesquinhamente, e eu desejava de forma quase perversa me integrar ao grupo daquelas que tinham as tais panelas e assim garantir a minha sensação de 'normalidade', no condomínio. Porém, a mercadoria não chegou, no dia combinado. Nem no dia remarcado e muito menos no dia posterior às duas ligações que fiz ao atendimento ao consumidor da empresa para reclamar do atraso da entrega. Trágico. Cena lamentável para quem de repente deparou-se, na cozinha, com panelas velhas que representavam a própria solidão e o medo de ser aniquilada pelo 'não' que a vida pode nos dar. Exagerada, pensam aqueles que convivem comigo e me olham, quando abro a boca, como se eu fosse uma megera descontrolada. Não. Não é nada disso, pois nesta casa compreende-se muito bem o espaço do outro, a dificuldade alheia, a patologia incurável e portanto resignada, mas o meu desejo de ter as benditas panelas era coisa insignificante. Lembrei, após desligar o telefone com o meu marido, que estava viajando a trabalho há semanas, de uma peça que estava em cartaz algum tempo e que não havia tomado coragem de ir assisti-la sozinha. O nome não me lembro, mas o enredo me chamou atenção: um homem buscava, após o suicídio da sua esposa, encontrar o motivo de sua morte e que aos poucos revelou-se como um dos possíveis responsáveis. É dor e sem analgésico. Só sei que peguei no sono, com um pouco da ressaca da raiva e da angústia, que nos deixa aliás corojosos e justificados e sabia que amanhã meu marido não ligaria para perguntar como eu estava, e que as panelas talvez nem chegassem e que dado o momento de comentar com as minhas vizinhas de condomínio sobre a aquisição feita elas já estariam falando sobre um eletrodoméstico high-tech. Talvez faltasse mais de mim e menos dos outros em mim mesma, confesso, coisa que eu sempre soube desde infância e que não seria agora que encontraria uma compensação, enfim, acho mesmo que sou, no fundo, a melhorzinha do condomínio.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

2011

E então, tudo foi reorganizado e colado dentro de mim: mosaico de esperança e gratidão!